3 Contos

A MÁQUINA DO DR. K.
Desde o início, soube que usaria a máquina. De nada adiantou protelar sua decisão. Isso apenas permitiu a colaboração indireta da esposa, que o rejeitou na cama e pela manhã saiu sem aviso. Sua imaginação fez o resto. Essa gota de oceano o empurrou mais cedo para a máquina. Num fim de tarde nublado, dirigiu-se ao prédio decadente e sondou a existência do obscuro Dr. K., o inventor e primeiro explorador do inconcebível artefato.
A partir de então só pensou na máquina e nas vantagens asseguradas: novo rosto, novo corpo, outra personalidade. E com isso outra vida. Todavia, era preciso não se iludir: a transformação tornava as pessoas apenas outras pessoas, mas em tudo iguais a quaisquer outras. Os hábitos, embora novos, continuavam os mesmos, coerentes com a espécie. A transformação obedecia, por um lado, ao gosto do usuário e, por outro, a uma fórmula já consagrada pela própria vida. Foram estes, em suma, os prós e os contras expostos pelo Dr. K. A última condição era: uma vez transformada, a pessoa não podia voltar atrás e, por conseguinte, só poderia se submeter a uma nova transformação oito anos depois. Tal exigência não era de natureza contratual, mas fisiológica, uma limitação do corpo humano...
Nos dias que se seguiram, organizou-se como se fosse partir em viagem de férias. Despedia-se, era evidente. A esposa se surpreendeu. Ele consertou todos os eletrodomésticos parados havia meses e, sem nunca ter manuseado antes um pincel, retocou as paredes manchadas pelo desespero de ambos. Também poliu os móveis e saiu em busca de novos suportes para as cortinas dos banheiros. Os reparos em sua vida íntima não foram poucos: passou a acordar mais cedo e convidar a esposa para caminhar, e a ir com ela às compras, quase interessado ou pelo menos em silêncio, a observar sua destreza em escolher e avaliar os produtos, respeitando sua natureza retraída e cautelosa. Fatos assim, se recorrentes, dispensariam a máquina...
No trabalho, livrou-se diligentemente de todas as pendências. Desengavetou antigos projetos e, atualizando-os, deu-lhes nova forma, redação mais precisa, livre de ambigüidades. Em duas semanas, o chefe o congratulou pelo entusiasmo dos últimos dias. Naquela tarde, saíram e se conheceram melhor. Quase se tornaram amigos. E marcaram uma pescaria, à qual levariam, ele a esposa, e o chefe a jovem namorada. Estavam bêbados e, por isso mesmo, mais íntimos, sem reservas. Chegou tarde em casa, mas ainda assim a esposa o esperava, afável e excitada. Prolongaram-se na cama, rindo e conversando. Depois lancharam e voltaram a se amar. O sol subia no horizonte quando afinal adormeceram, esquecidos dos sombrios temores dos últimos meses.
O segundo encontro com o Dr. K. aconteceu, apesar da felicidade que agora o contemplava. Com a esposa, era como se tivessem voltado aos primeiros dias. Transformada, ela por muito pouco não retomara aquela fisionomia inicial, que lhe tirava o sono. Mesmo assim, não mudou de idéia. Seguia por trilhos sem volta. O Dr. K. o obrigou a preencher uma enorme papelada e em seguida, tendo chamado sua jovem assistente, o introduziu na sala onde estava a máquina, uma alta cápsula metálica, de superfície uniformemente lisa, com duas imperceptíveis portas, uma de cada lado. Afora isso, nenhum botão, qualquer mecanismo. Aparentemente, a operação se concretizava mediante controle remoto. De fato, nas mãos tanto da assistente quanto do doutor havia um bastão da mesma cor azul-metálica da cápsula e repleto de botões. A um gesto do doutor, uma das portas se abriu, para cima. A assistente o pegou pelo braço e conduziu até o interior da cápsula. No exíguo compartimento não havia nada, exceto o ar sufocante e asséptico. Enquanto usuário, ele teria que ficar de pé ali, entre quatro paredes, e esperar... Então adormeceria e, como num sonho, antes de cair, despertaria do outro lado, outro. O processo não consumia mais que dois minutos, garantiu a moça, com uma voz de veludo e um sorriso provocante. Quando fez menção de deixá-lo, ele protestou:
“Não”.
“Não?”, ela disse, surpresa.
Não estava preparado.
“Ninguém jamais estará”, filosofou o Dr. K.
Abandonou o estreito compartimento. Durante o tempo que esteve ali suas mãos passearam pela lisa superfície metálica. Assim vira, certa vez, num filme antigo, um homem tocar os livros na estante. Espécie de despedida ou de reconhecimento de um universo ou instante já perdidos ou por esquecer, brevemente... O súbito roçar da morte, talvez, ou o despertar para um incerto mundo de sensações. A verdade era que ali, naquela espécie de ataúde, ele iria desaparecer em breve, e para sempre. Seu último ato nesta vida.
“Eu sei”, disse, com um considerável atraso e no tom vazio e hesitante de alguém que a vida inteira foi um tímido, um inadaptado. “Amanhã, sem falta.”
Naquela tarde foi visitar a mãe no asilo. E talvez se despedir. Não foi difícil: a velha, diante da tevê, se assemelhava a um peixe impassível dentro do aquário. Emanava indiferença e fleuma. Não era o filho que estava ali, mas um homem qualquer, estranho. O lábio inferior, caído, acentuava-lhe a expressão de desdém e alheamento. Comiserado, ele puxou uma cadeira e se interpôs entre a mãe e a tevê. Para seu assombro, a mulher continuou a olhá-lo como se ele fosse uma extensão do aparelho. E mesmo quando ele o desligou ela não esboçou nenhuma reação. A definitiva ausência de vida útil a suprimira de si mesma. Restava-lhe agora fundir-se à noite... Esta certeza o esmagou.
A esposa o procurou na cama, mas, pela primeira vez desde que se conheciam, ele a recusou, com elegância e uma contenção sexual incomum nos homens. Sem rancor, ela se virou e adormeceu, em segundos, dissolvida na exaustão. De seu lado, ele já ia sonhando, sonhando e sendo absorvido. O Dr. K. e sua assistente os receberam sem ânimo, os gestos bruscos e automáticos. Quando afinal a moça lhe perguntou, friamente, quem desejava ser, ele ficou prostrado, sem palavras. Não concebia a vida como uma escolha senão obscura, indefinida, do acaso...
“Vem”, a moça disse, puxando-o delicadamente. “Não importa. É sempre assim, com todos...”
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Mayrant Gallo. Baiano, poeta e contista, autor de “Dizer adeus” (contos, Edições K, 2005). É colaborador regular do Correio da Bahia, com crônicas, contos e ensaios.
http://mgallo.zip.net/


TRÊS CONTOS DE MAIRA PARULA
1.
Amar é sofrer, eu vou te dizer. "Não se esqueça de trazer uma lagosta pra mim", disse ela bem assim na beira do cais antes de eu partir para um mergulho de onde não sabia se voltaria. Agora aqui, a 45 metros de profundidade, e descendo cada vez mais, fico me perguntando por que não a mandei à merda, sem endereço. Desde criança que tenho dois sonhos: resgatar do fundo do mar a cruz do bispo Sardinha e me apaixonar por uma samurai que pisasse minha garganta até que me faltasse o oxigênio pra eu gozar. Se isso é pecado, me puna. A cruz do bispo eu ainda não achei, mas continuo mergulhando, e fundo, muito fundo. Tão fundo que acabei descobrindo Isabel dentro de uma ostra, escondidinha. Hoje vivemos juntas, só eu pago o aluguel enquanto ela arde na Fogueira Santa de Israel. Amar é sofrer, não preciso dizer mais do que as canções banais: é só uma gota de sangue verbal, apaixonei-me por uma obreira pentecostal.
2.
Jurandy me deixou aqui pensando. Foi buscar um côco. A areia pinica minha bunda. Jurandy gosta de praia deserta. Pra mim tanto faz. Ele diz que gente demais mancha o mapa. Jurandy fala bonito. No princípio eu assustava. Agora acostumei. Deixo ele falando sozinho. Como um rádio. Enquanto ele fala eu penso. Falo comigo coisas que Jurandy não ouve. Porque se ouvisse não ia me beijar com tanto gosto. O mar me deixa triste. Triste mesmo. E tristeza é coisa de vício. Não dá pra controlar. Se eu entrasse na água a gora, Jurandy nem ia ver. O que a gente não vê não dói. Não tem do que lembrar. Lembrar que eu fui bem pra longe, mas tão longe que ele nunca conseguiu me alcançar.
3.
Quando ela entrou pela porta da cozinha, vi em seus olhos que havia acabado. Perdi o apoio dos pés. Conversas não adiantariam mais. Já havíamos moído toda a carne. Voltei-me para meus amigos. Eram nove pessoas transpirando álcool numa cozinha abafada e alguma coisa dentro de mim se aconchegava. Outra incomodava. Na sala alguém ouvia Cranberries sem parar. Ela teria rido de mim se já não me ignorasse. Todos teriam rido de mim se já não estivessem rindo de outra coisa. Sem tirar o cigarro da boca, ela abriu a geladeira num impulso motor. Os músculos de minhas costas trincaram. A geladeira abraçou-a. Eu não tive a mesma sede.
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Maira Parula. Gaúcha, autora de “Não feche seus olhos esta noite” (Ed.Rocco, 2006). http://www.prosacaotica.blogspot.com/

COMIDA
Teteka Alves do Nascimento, sensibilizada pelas notícias em torno do Dia de Ação de Graças, quis comemorar a data de uma maneira condigna, algo mais do que fantasiar os filhos de vampiro para a escola, como fizera no recente Halloween. A humanidade sofredora estava necessitada da sua contribuição, podia perceber isso quando saía às compras e se deparava com indigentes enfeando as ruas. Convocaria o motorista, reuniria forças e iria entregar, pessoalmente, uma refeição para os primeiros maltrapilhos que encontrasse.
Dispensou a criadagem, fizessem o que lhes desse na veneta, desde que estivessem a postos para a preparação do jantar, mas reteve Carlos, precisaria do carro. Sentia-se, assim, em melhores condições para vasculhar a cozinha, a despensa e a adega. Primeiro, abriu o freezer das carnes vermelhas, mas ter que assar alguma já era exigir demais de sua benevolência. No de frutos do mar, achou uma linda lagosta, isto sim, era o tipo de refeição que um faminto jamais esqueceria; colocou-a sobre o balcão. No de aves, localizou o peru reservado para a celebração de logo mais, os patos para alguma comida alemã, uma lebre que ali não deveria estar, as perdizes e marrecas das caçadas de Romano, e uma profusão de frangos; tudo, evidentemente, cru, à exceção de uma galinha caipira que fora congelada assada, e, intacta, esperava por dentes ávidos; separou-a. Da geladeira, colheu os escargots restantes do jantar francês de segunda-feira.
A lagosta, claro, estava crua, mas alguma coisa essa gente também poderia fazer por si mesma; afinal, não os tinha visto ao redor do fogo, embaixo do viaduto, assando qualquer nesga num espeto recurvado? Na adega do porão, examinou vinhos franceses, italianos, portugueses, chilenos, mas se conteve, num assomo de lucidez, antes de visitar latitudes menos prováveis. Nada disso, não iria instrumentalizar a bebedeira de ninguém. Subiu para a área de serviço, e de um móvel embutido retirou um conjunto de sacolas, escolhendo uma que lhe trazia boas lembranças de Luxemburgo; eles mereciam, o dia era mesmo especial.
Lembrou-se, porém, que só comer não bastaria, fazia-se necessário algo que tornasse mais bonitas aquelas vidas isentas de sentido. Com um excesso de cuidados, como se pudesse ser flagrada a qualquer instante por alguém que, fora do seu conhecimento, estivesse habitando a casa, percorreu salas e ambientes até retirar da mesa do espelho do hall um ikebana comprado no dia anterior. Não importava que já se extinguira sua anunciada duração ritual de vinte e quatro horas; os mendigos não se preocupariam, à japonesa, com a eterna mudança propiciada pela passagem do tempo; se nem ela ligava para esses orientalismos, por que eles haveriam de se preocupar; continuava bonito, viçoso e colorido, apesar de uma pequena necrose tê-lo maculado durante a noite. O arranjo fazia-se de uma flor de única pétala, enorme, amarela, cravada pela haste na argila e disposta na horizontal; de um verde e frágil junquilho, que, desde a haste da flor amarela, apontava para o alto; e de um galho finíssimo, negro, resistente, encimado por um botão diminuto, débil, e também amarelo, que completava a filosófica tríade pendendo para dentro do conjunto.
Chamou o motorista, juntou os víveres, e saiu no automóvel cinza-metálico que acabara de chegar do porto de Rio Grande, presente de aniversário que lhe dera Romano, talvez para compensar sua inextinguível ausência, fosse pelos afazeres nas empresas durante a semana, pelas sádicas caçadas nos dias de descanso ou pelas malditas e constantes viagens ao exterior.
Ande por aí, quero ver a paisagem – disse ao motorista, envergonhada de lhe confessar seu verdadeiro intento. Todavia, depois de algumas voltas, ordenou-lhe passar pela avenida Ipiranga, na pista mais próxima do bueiro central, onde mal se desprendia das margens o arroio Dilúvio, tal a quantidade de dejetos e esgotos que suportava. Não custou muito, percebeu uma movimentação embaixo de uma das pontes. Mandou Carlos estacionar a duas quadras, dentro do shopping, enquanto descia sem lhe revelar nada. Voltou a pé em direção à ponte, a última antes do gelatinoso arroio lançar-se no estuário do Guaíba, balouçando orgulhosa a sua caritativa sacola.
Do lado do viaduto, de onde subia a morrinha de uma fumaça esbranquiçada, gritou “oi moço”, mas não foi atendida. Desconfiou não houvesse ninguém em casa, mesmo assim, decidida, avançou uns passos pelo declive e repetiu o “oi moço”, apesar de ter diante de si uma mulher e dois homens. Sem saber o que dizer, arrependeu-se antes mesmo de qualquer contato, tão horríveis lhe pareceram os poucos dentes do homem negro, as nódoas de sujeira presas ao cabelo do homem ruivo, e as pernas abertas da mulher, sentada sobre uma pedra, deixando entrever o pano imundo que lhe servia de peça íntima. Para sair do constrangimento a que se impusera, ergueu a sacola luxemburguense e antecipou:
– Trouxe uns petiscos.
– Comida?! – arregalou os olhos o negro.
– É sim, e da melhor. Hoje é Ação de Graças, sabe, a festa norte-americana, e eu...
Olhou para dentro da sacola e retirou lépida o pote de escargots, alcançando-o. A mulher o tomou com repentino alvoroço, abriu-o, e pausadamente exclamou, entre decepcionada e compreensiva:
– Moça, a gente é pobre, mas nunca comeu caramujo.
– Talvez vocês não estejam habituados, é coisa fina, importada.
– Pode deixar aí – apressou-se o ruivo, pensando no seu cachorro. – Que mais que a senhora trouxe?
Temerosa de ofendê-los, retirou devagar a enorme lagosta:
– Ainda precisa ser preparada – sorriu amarelo.
Um dos homens a pegou, aproximou do nariz o fedentino animal, e, por uma educação atávica e esquecida, colocou-a sobre o banco de madeira. Teteka aligeirou-se e passou a mão na galinha, isso eles deveriam conhecer. A mulher da ponte apanhou com as duas mãos aquele coco congelado, sentiu o frio espinhar-lhe os dedos, e o deixou cair, o que fez que rolasse para o Dilúvio:
– Também não prestava. Olha só, tá boiando!
Esperançosa de que depois a fome os fizesse comer os escargots e preparar a lagosta, anunciou o ikebana com um sorriso nos lábios, uma flor nem o mais bruto dos seres recusaria.
– Tá bom, moça – falou o negro. – Mas na próxima a senhora vem com um bife no feijão-com-arroz, que a gente agradece.
Teteka retirou-se aborrecida. “Mal-educados e ignorantes.” Dirigindo-se ao shopping, contudo, já pensava de outra maneira. Contaria para a Gina, e para todos na festa da consulesa, sua grande ação de graças, e de como sentira preencher-se um vazio no seu peito enquanto assistia àquelas pessoas devorarem a carne dos caracóis iniciais e chorarem de agradecimento pelo que lhes proporcionara. Não, nada de baixo-astral, de ruim chegava a vida.
Embaixo da ponte, o homem ruivo chamou o seu cão e lhe atirou os escargots. O animal os farejou um a um, deu de lombo e foi embora.
– Nem o Importante quis essa joça – disse.
– O caranguejo, não fedesse tanto, eu até vendia pros hippie fazer artesanato – concluiu o negro, antes do arremesso para o meio do rio.
Sentaram-se em torno das pedras fumacentas, inconsoláveis. Gigante e avermelhado, o sol se punha atrás das ilhas do Guaíba, deixando um rastro dourado e ondulante sobre as águas. De mão em mão, passaram o arranjo floral, e, por teimosia ou desagravo, o comeram.
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Sidnei Schneider. Gaúcho, contista e poeta, autor de “Plano de Navegação” (poesia, Dahmer Editora, 1999). sbs303@terra.com.br

CARAPUCEIRO


QUANDO AS MULHERES ACORDAM


Impagável uma mulher quando acorda. Nada mais lindo e misterioso do que uma mulher acordando. Do que uma mulher antes das 10h da manhã, como uma vez vi umas fotos num livro de arte inglês, pelo que me lembro ou sonho. Uma mulher e suas verdades nos olhinhos que se espantam com o mundo como uma criatura que acaba de sair do útero, o maior dos sustos, o maior dos assombros da existência. Umas têm um mau humor tremendo, meu Deus, te deixam acuado, são capazes de te xingar, espezinhar, te maldizer, para depois te amar ainda mais. Outras acordam paranóicas com os cabelos, tenham caracóis, segredos, ou sejam lisos, loiros ou negros. Ainda mais se for no começo do amor, do caso, do namoro, do ensaio de casamento. Estas nos deixam na cama e correm para o espelho. Tudo por uma rápida conferência de Narciso. Se acham que estão “horríveis”, naquele jeito, como naquele hiperbólico julgamento, dote tão feminino, te abandonam por horas no banheiro... E voltam as mais lindas desse mundo. Existem aquelas que não estão nem ai, estas são raras, acordam e te presenteiam com aquele sorriso, como se tivessem sonhado com a possibilidade do nirvana ao teu lado, cria da tua costela, como canta o outro Chico, uma beleza de menina!

Os mistérios de uma mulher quando acorda são muitos. Umas simplesmente silenciam, no máximo um monossílabo, isso quando são, por alguma razão, indagadas. Elas têm dúvidas, ainda não sabem se amam ou não amam, elas ainda guardam velhas heranças amorosas, tudo bem, coisas da vida. Algumas acordam assustadas, como se dissessem, “que besteira eu fiz, nunca mais eu bebo”. Outras te mandam embora antes da aurora, para dormir o sono dos justos, o sono que livra de pesos na consciência e possíveis laços imediatos. Certíssimas.

Adoráveis aquelas que mantêm a posição de “conchinha”, embora os motores da cidade já ronquem, apesar de todos os despertadores, todos os celulares. Estão tão plácidas, jamais submissas. Existem aquelas que acordam e põem logo uma música, uma música de acordo com o clima. Se tem sol, rock´n´roll, se faz frio, jazz, algo cool... Se o dia está cinza, toca aquela, que diz assim, como não quer nada, uma porrada, “ah insensatez, que você fez, coração mais sem cuidado...”

Nada mais lindo e misterioso do que uma mulher acordando, seus gestos, a dramaturgia, o arranque para a vida ou a inércia nos teus braços. Os barulhos de uma mulher acordando, a música dos ossos se espreguiçando, os gerúndios tantos das ações e silêncios, o chuveiro ao longe a nos dizer tantos desejos e coisas, meu Deus, aquela água já escorre linda e faz pocinhas líricas nas saboneteiras...

Quantas dúvidas e quantas certezas acordam juntas quando uma mulher acorda.

----------Xico Sá

DUAS VOZES – música e literatura

Com o objetivo de divulgar e debater a produção musical e literária brasileira contemporânea a livraria Nova Roma, em parceria com o jornal Vaia, promove, mensalmente, o encontro de dois artistas (um músico/compositor e um escritor) para conversa, leituras de textos literários e pocket show.
O programa cultural Duas vozes – música e literatura pretende criar um espaço eclético para discussão de idéias, de todos os gêneros, grupos sociais e artísticos, tendo como linguagens a música e a literatura, além de tornar possível discutir e informar, colocando o público em contato direto com os artistas convidados para uma conversa descontraída e informal.
O evento tem duração de aproximadamente uma hora e meia e está dividido em três etapas: comentários sobre a obra dos convidados e breve entrevista; leituras e comentários dos artistas sobre seus trabalhos e participação do público e pocket show com o músico/compositor convidado.
No primeiro encontro – ocorrido em 29/09 - participaram o poeta e jornalista Nei Duclós e o escritor, compositor e músico Cláudio Levitan.
Em outubro - dia 27/10, sábado – os convidados foram a cantora e compositora Monica Tomasi e o escritor e jornalista Luiz Horácio.
Em dezembro – dia 01/12, às 18hs – estarão participando do evento o músico e compositor Nelson Coelho de Castro e o escritor Luis Augusto Fischer.
A livraria Nova Roma está localizada na rua Gen.Câmara, 394, Porto Alegre (telefone 30134535). A entrada é grátis.

Histórias do Brasil - quem não conhece não sabe o que tá perdendo

ANTOLOGIA CARIOCA (crônica de Luiz Antonio Simas)

Cante a tua aldeia e serás universal. Hoje cantarei minha aldeia, conforme o conselho do poeta. O que o Rio de Janeiro assistiu neste sábado é coisa de antologia. A Rua do Ouvidor, a mais charmosa da cidade, foi brindada com momentos absolutamente inesquecíveis, dignos de entrar para todos os anais da mui heróica e leal cidade de São Sebastião. Vamos aos fatos.
1- A livararia Foha Seca, templo maior da carioquice, organizou o lançamento do livro do jornalista Luís Pimentel, Noites de Sábado, e do cd do grande Zé Luiz do Império, com direito a uma roda de samba de primeiríssima qualidade, liderada pelo cavaco do Daniel Scisinio e pelo sete cordas do Tiago Prata, o grande Pratinha.
2- O samba aconteceu ao mesmo tempo em que na igreja da Santa Cruz dos Militares, na esquina da Ouvidor, rolava um casamento. Como a noiva, a Renata, se atrasou, os padrinhos resolveram aguardar a cerimônia na roda de samba. Cheios de salamaleques e meio-fraques, abandonaram a liturgia do cargo e encheram o pote. Estimulado pelos jornalistas José Sergio Rocha e Cesar Tartaglia e pelo caricaturista Cássio Loredano, o noivo, o Horácio, desistiu de esperar a consorte no altar e também resolveu curtir o partido-alto. Zé Sergio, Tartaglia e Loredano tentaram de todas as formas convencer o Horácio que o samba era melhor que o matrimônio. Alguns mais ousados queriam cooptar a noiva para a quizumba. Os padrinhos, já dobrando o Cabo da Boa Esperança, concordaram. A cena, carioquíssima, foi digna das páginas mais inspiradas de um Sérgio Porto; Zé Luiz cantava Malandros Maneiros, um clássico em homenagem aos bicheiros da velha guarda, e os convidados do casamento acompanhavam na palma da mão. No auge da irresponsabilidade, o noivo convidou os presentes, a maioria esmagadora de bermudas e chinelos de dedo, para a festa do casório. O povão ovacionava os pombinhos de forma colossal - com gritos de Aha-huhu- ô Renata eu vou comer seu bolo! e coisas do gênero.
3- O jornalista Álvaro Costa e Silva, o famoso Marechal, ainda sóbrio, me disse: - Simão, eu sou Império Serrano, Botafogo e Bafo da Onça. Horas depois, aos prantos, Marechal me segurou e afirmou com a urgência dos condenados: - E Emilinha! Eu também sou Emilinha...
4- Zé Luiz do Império, estimulado por doses generosas da água que o passarinho não bebe, resolveu homenagear a Rua do Ouvidor, a Folha Seca e o Rodrigo Ferrari, que comanda a livraria ao lado da Daniela Duarte. Disse o Zé Luiz:
- Obrigado ao Rodrigo. Valeu, Rodrigo.
Imediatamente, ouviu-se uma única pessoa aplaudindo o Rodrigo. Era ele mesmo, o próprio Rodrigo Ferrari, que se aplaudia numa espécie de auto-homenagem comovente. Digão, já tocado, falou-me emocionado:
- Só eu me aplaudi.
5- O percussionista Carlos Negreiros, que deu uma bela canja, exclamou entusiasmado com a performance do Pratinha:
- Que sete cordas é esse? Escutem o sete cordas.
O compositor Jards Macalé, também estarrecido com as diabruras do garoto, perguntou:
- Quem é o menino do violão? Quem é esse monstro?
6- Sabem quantos policiais estavam fazendo a segurança do evento? Nenhum! Sabem quantos conflitos ocorreram? Nenhum! Vivemos um sábado monumental, digno de figurar num conto do Lima Barreto, numa novela do João Antônio, ou num samba-de-breque do Kid Morengueira.
O Rio de Janeiro vive!

EVERTON BEHENCK





Everton, vamos começar falando sobre a tua trajetória de poeta até aqui. Tem livro(s) publicado(s) ou pronto pra ser publicado(s)? Publicou onde teus poemas, revistas, jornais, concursos, internet?
Não tenho livro publicado. Tive dois poemas publicados em antologias. Uma em São Paulo e outra aqui na Feira do Livro, no projeto Habitasul Revelação Literária na Feira. E outros quatro na Revista Entre Livros, em novembro de 2006, numa parte da revista dedicada a novos autores. No mais, Internet. No Vaia, em sites de relacionamentos e agora em um blog: http://apesardoceu.wordpress.com/.

Ser poeta é mais talento ou esforço? Descobriu-se ou inventou-se poeta?
Acho que começa no talento. Mas acontece mesmo no esforço. No trabalho de ouvir o poema. Ouvir se ele está cantando para as pessoas. Se está cantando afinado. Com sentimento. A poesia, para mim, sempre esteve muito ligada à música. Ao ritmo. Então esse é o esforço. O trabalho. Mas não gosto de pensar nesse esforço como uma “cerebração” total da poesia. E sim passar o verso várias vezes por um filtro de sentimento. O que a gente sente, ainda não é poesia. Como disse o Drummond. Mas sem o que a gente sente, também não existe poesia. Não lembro direito quando comecei. Mas foi bem jovem. Bem inconsciente, mesmo. Aquela coisa da pré-adolescência. Sempre tive a melancolia por perto. Com uns dez, onze anos comecei a colocar coisas no papel. Aquele velho clichê da necessidade de expressar. Não fazia idéia do que estava fazendo. Mas continuo fazendo. Pelos mesmos motivos.

Quais livros (poesia e/ou prosa) fizeram parte da tua formação?
Na minha casa não tinha livros. Lia o quem aparecia. Ou o que me emprestavam. Mas em um momento, quando eu já era mais velho, comprei alguns livros de um amigo do meu chefe que tinha voltado de Fortaleza e estava sem dinheiro. Entre eles estava o Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas. De Robert M. Pirsig. Um Road Book filosófico. Li umas três vezes. Ta lá na minha instante todo sublinhado e cheio de notas de rodapé. Os pensamentos sobre o ser “romântico” e “clássico” e o anticonceito de qualidade que ele apresenta piraram a minha cabeça na época. Teve um impacto grande em mim como pessoa. Assim como o Nietzsche com o Humano, demasiado humano. Um filosofo que estou sempre relendo e que, agora, felizmente, está na moda.

Teve/tem algum incentivador? Quem?
Felizmente sim. Sempre. Primeiro para ler. Uma senhora que me comprava livros. Chegava em casa e tinha quatro, cinco livros novos me esperando. Me deu muitos livros que não escolhi. Mas alguns deles me escolheram. Depois para escrever. A Claudia Tajes. Que incentiva tanto que me convidou para fazer uma participação especial no seu último livro: Louca por Homem. Fiz os poemas do personagem de um dos capítulos do livro, que é poeta e se relaciona com a protagonista. Ela foi fundamental para que quisesse mostrar os versos, colocar a cara para bater. O Professor Luis Augusto Fischer também teve ótimas palavras a meu respeito quando pedi a ele indicação na busca por espaço para publicar. E o Fabrício Carpinejar, de quem sou fã, e foi muito generoso ao me indicar para a revista Entre Livros. Me ajudou muito a conseguir publicar lá. Foi um grande incentivo.

O que te inspira a escrever? O que é matéria para a tua poesia?
Tudo o que eu sinto. E a relação desses sentimentos com o mundo ao redor. Com as coisas mais simples. Com as emoções dos outros que vejo e sinto por aí. Tudo merece um verso.

Costuma começar pelo primeiro ou pelo último verso? Qual deles é o mais difícil? O que detona o poema?
Começo sempre pelo começo. Foram raras as vezes que não foi assim. Às vezes o fim vem no meio. Aí deixo ele de lado, termino de desenvolver e coloco o fim. Começo a sentir angústia. Aquilo vai tomando forma. Ganhando peso. É mais um clichê mas é exatamente assim. Sinto no peito. Como se fosse sendo preenchido por esse sentimento. Um, dois dias. Aí, escrevo um, dois, três poemas. De um fôlego. Depois trabalho em cima. Reviso. Leio em voz alta. Outra coisa que acontece muito é escrever para dizer algo a alguém. Como um recado. Uma carta. Ou como resposta a uma pergunta. As vezes alguém diz algo que me toca e faço um verso.

Há idéias ou imagens que te perseguem, que ficam grudadas no teu juízo algum tempo?
Sim. Não sou o cara mais original do mundo, mas são imagens muito fortes para mim. Coisas que sinto com força muito grande. O peito. Como um lugar imenso onde estou sempre me perdendo. Sempre encontro minha multiplicidade nesse espaço. Sei que não é a imagem mais nova do mundo. Mas sinto isso de um jeito tão forte que não consigo fugir dessa imagem. Outra, menos recorrente é a do espelho. O que ele mostra ou o que não mostra. Talvez em função de muitas experiências lisérgicas em frente ao meu próprio reflexo. Ou então os sentimentos como personagens. Sentimentos com sentimentos. Ou sentimentos com atitudes humanas. Personificados. Existem outras, mas menos recorrentes.

Qual é a tua relação com a cidade onde mora, porto alegre? No que isso influencia a tua poética e se manifesta no que tu escreves?
Bom. Sou fruto de Porto Alegre. Então, a mão que escreve é de um portoalegrense. Mas acho que na prática, a cidade está mais em mim do que no que escrevo. Busco muito a simplicidade. A universalidade. Queria escrever para todos. Acho que não marcar traços muito regionais, pelo menos de forma explícita, faz parte disso.

Como define a tua poesia? Como caracterizaria tuas principais ambições estéticas?
Simplicidade. Quero fazer uma poesia simples. Popular. Com imagens simples que todos entendam. Uma poesia da emoção. Dos sentimentos, sejam quais forem. Desde que sejam sinceros. Só isso.

Tu identificas uma geração literária hoje, ou um grupo de poetas brasileiros com projeto comum definido? E tu te vês fazendo parte de alguma geração literária?
Acho que não. Mas com certeza mais por ignorância minha do que pela inexistência dessa geração. Ou gerações. A impressão que eu tenho é que a pluraridade é tão grande que poderiam ser reunidos poetas com todo o tipo de estilos. Desde os mais herméticos e eruditos até rappers. Não me vejo fazendo parte de nada, na verdade. Sigo fazendo o que eu faço e vou seguir fazendo apesar de qualquer coisa. Conheço algumas pessoas que se alinham um pouco com o que eu faço. Um amigo em Curitiba, uma menina em Minas, outra aqui em Porto Alegre. Trocamos coisas. Nos lemos. Mas longe de ser uma geração ou movimento.

Recebeu ou recebe conselhos importantes de escritores na tua trajetória? Como foi e é o diálogo com outros escritores, da tua e de outras gerações?
Recebi uns conselhinhos do Carpinejar por mail. Coloquei no meu blog com todo o orgulho. E tento absorvê-los. Mas como tenho essa visão romântica das coisas, sei que no fim vou fazer como estou sentindo. Seja lá como for. E a Claudia Tajes. Bom, ela não me dá conselhos, mas me empresta muitos livros. Ótimas leituras. Esses livros me dão muitos conselhos.

Tu lês crítica literária? Concorda com a idéia de que ela, nos jornais e revistas, está mais digestivo-introdutória do que analítico-crítica?
Não costumo ler crítica. Tenho uma relação muito simples com o que consumo em matéria de arte. Se eu gosto é bom. Se não gosto é ruim. Claro que acompanho lançamentos. Me informo. Mas acabo tomando conhecimento das novidades e afins, mais por amigos com o gosto alinhado com o meu do que pela crítica oficial. Quando leio, tento não ser muito influenciado pela opinião que está ali. Justamente por achar a crítica mais digestivo-introdutória. Se é que isso significa o que eu entendi. Não quero ser uma daquelas pessoas que lêem uma crítica, formam opinião e a reproduzem, às vezes, sem nem mesmo chegar a ler a obra.

A crítica literária pode influenciar a produção poética de uma geração?
Se você está olhando para a crítica, sim. Se está olhando para o que você sente, não.

Muitos poetas hoje apresentam uma versatilidade acadêmica. Eles conhecem várias línguas, traduzem, fazem ensaios, críticas, resenhas, estudam várias disciplinas. O poeta precisa ser um erudito? Poesia só se faz com muito estudo?
Pra mim, poesia só se faz com muita sinceridade. Claro que estou sendo simplista. Claro, também, que não vou fazer uma apologia da ignorância. Meu histórico escolar é terrível. Com expulsão de colégio, parada nos estudos, retomada com supletivos. Mas sempre busquei cultura. Conhecimento. Só não me agrado muito das instituições estabelecidas. Mas acho que minha resposta está na banda Cordel do Fogo Encantado. Eles contam uma história de um poeta nordestino chamado Zé da Luz. Contam eles, que disseram para o poeta que para falar de amor era preciso muito estudo. A resposta foi:
AI! SE SÊSSE!...
Se um dia nós se gostasse;
Se um dia nós se queresse;
Se nós dos se impariásse,
Se juntinho nós dois vivesse!
Se juntinho nós dois morasse
Se juntinho nós dois drumisse;
Se juntinho nós dois morresse!
Se pro céu nós assubisse?
Mas porém, se acontecesse
qui São Pêdo não abrisse
as portas do céu e fosse,
te dizê quarqué toulíce?
E se eu me arriminasse
e se tu com eu insistisse,
prá qui eu me arrezorvesse
e a minha faca puxasse,
e o buxo do céu furasse?...
Tarvez qui nós dois ficasse
tarvez qui nós dois caísse
e o céu furado arriasse
e as virge tôdas fugisse!!!
Zé da Luz

Como leitor de poesia o que tu achas que de mais importante um poeta tem que expressar na poesia que faz?
Expressar sua verdade. O que sente de mais íntimo. Mais denso. Mais forte. Mais sincero. Acho a capacidade de imprimir uma emoção em uma obra e essa impressão ser tão forte que chega ao leitor, entra nele e vai buscar, lá dentro, a sua correspondente no outro, uma das coisas mais sublimes e mais humanas. Acho que é aí que a poesia acontece realmente. Pelo menos para mim.

Qual a relação entre poesia e técnica? Basta dominar certas técnicas para ser poeta?
Basta ser dominado pela poesia para ser poeta. Sou intuitivo. Por isso sou simples. E simplório muitas vezes. É a vida. Minha relação com a poesia passa tão longe da técnica, do pragmático. Não consigo ver um poeta só da técnica. Claro que existem formas e fórmulas consagradas. Ou novas. Mas na minha opinião elas devem ser apreendidas para aumentar as possibilidades. Para ter receptáculos mais variados, talvez, para a poesia. Mas o que vai correr na veia da técnica. Da forma. Isso não se aprende. Aquilo que toca o outro de verdade, isso não está na técnica. Por mais que eu ache que devemos aprender, pensar, discuti-la e colocá-la em prática.

A poesia tem prestígio no âmbito da nossa cultura?
A impressão que tenho é que ela tem. Mas quase como um senhora que todos amam, respeitam, ou dizem amar e respeitar. Uma senhora que ninguém ousa agredir, mas que poucos gostam de visitar.

Qual a função social da poesia?
A poesia nos humaniza. Sensibiliza. Nos deixa mais suscetíveis aos sentimentos. Mesmo que não sejam nobres e bonitos. Acho que estamos muito distantes dos sentimentos. O homem comum, urbano, parece não sentir muito, nada. A poesia faz isso. Fura essas barreiras. Nos deixa menos endurecidos. E se olharmos ao redor, estamos precisando muito disso. Mas também pode ser mais simples. Um verso ajuda um homem a conquistar a mulher que ele julga ser o amor da sua vida, eles casam e tem filhos. Acho que o verso cumpriu um papel social lindo. Vocês não acham?

Qual a melhor editora brasileira? E qual a que edita e publica melhor livros de poesia?
Desculpe, mas não tenho informação suficiente para responder essa pergunta. As estantes das livrarias quase não tem poesia. Escondida num canto da loja. Mas a internet está cheia de versos. Sem julgamento de qualidade, isso deve significar algo.

Já participou ou pensa em participar de oficina de poesia? Como ela foi/será?
Nunca participei. Participei de uma curta oficina de contos. Achei muito interessante. Não sei exatamente como é/seria uma oficina de poesia. Talvez nos mesmos moldes que uma de conto. Com leitura de autores consagrados, discussão destes, proposta de temas, produção própria, leitura e discussão sobre essa produção. Acho muito válido qualquer exercício, discussão, leitura ou produção em função de um aperfeiçoamento. Então, acho muito válido qualquer curso ou oficina para buscar isso. Quem sabe quantos atalhos podem ser aprendidos. Coisas que a gente leva anos para aprender sozinho. Quando sobrar grana e um tempo, faço aquele curso de escritores da Unisinos.

O que tu achas do jornal Vaia?
Foi um espaço que me encontrou e não o contrário como é mais comum. E isso é muito importante. Me deixou muito feliz e também me fez pensar. Como isso é um sinal de que o jornal é instigado, valoriza a nova produção, procura conhecer. Assume esse papel. Provoca, dá espaço. E age. Faz eventos. Se descola da tela do computador, das páginas do jornal e vai pra vida. Mobiliza as pessoas. Faz as coisas efetivamente acontecerem. Podem contar comigo pra qualquer função.

Repito uma pergunta que a Clarice Lispector sempre fazia aos seus entrevistados: o que é mais importante na vida pra ti?
O importante é viver. Apesar do céu.

Poema de aniversário

Um dia

Vou me desfazer

Na terra

Me diluir

Em partes

Tão pequenas

Que a partir delas

Poderia ser:

O que for

O que der

O que o chão quiser

Não ser nada

Exatamente

Como sou agora

Uma parte

De um Tudo

Tão complexo

Que não há palavra

Para dizê-lo

E como é bom

Não sabê-lo

O que te prende ao chão?

Essa força

Que força tudo

Ao centro

A terra dura

A água pura

O ar

Onde me afogo

O que te joga ao céu?

Esse não poder ser só

Eu rogo a alguém

Que não sei o nome

Mas cada noite

Insone

O conhece

Não sei da prece

Mas o milagre conheço

De perto

Mas nenhum milagre

Impede a tarde

Que parte

Um dia não vou ser mais

Que um voltar pro mundo

Notando o peito

Na memória de quem fica

Nada explica

A vida

Esse destino inevitável

Nada sabe

A morte

Esse voltar a fazer parte

Como sabemos ser eternos?

Se nem mesmo

O próximo segundo nos pertence

Somos o fogo de uma vela

É bom que queime.

--------Mais aqui Apesar do céu











CONTO DE HENRIQUE SCHNEIDER


Estátuas vivas


A estátua viva, engalanada em suas vestes brancas de pitonisa grega, enfeitava com sua imobilidade a movimentada manhã dominical da Redenção. O colorido e o burburinho, as crianças a tocar-lhe as roupas para saber se eram de verdade, os raros latidos dos cães menos inteligentes, nada conseguia romper-lhe a atenção que, brilho claro e alvaiade no rosto, reservava à personagem. À frente do banquinho no qual se equilibrava há horas, um pote no qual os freqüentadores do brique depositavam alguns trocados. Apenas de quando em vez, porque até às estátuas deve ser dado o privilégio do movimento, ela trocava de posição, sem alterar a expressão vaga e distante do olhar e sem sorrir: sorrisse, e o dente faltante lhe destruiria a altivez de pitonisa e terminaria sem dinheiro o seu domingo.
Lá pelas duas da tarde, cansado de espingardear entre as banquinhas de antiguidades e artesanato nos quais mexera em tudo o quanto coubesse em suas mãos, o menino de rua descobriu a estátua. Coçou sem pudor os calçõezinhos rotos de caridade e mostrou a língua à personagem, disposto a arrancar-lhe algum sorriso, mas não: o outro seguia incólume à sua frente e parecia olha-lo como se não estivesse ali. O garoto, então, tentou uma palhaçada – mas foi como se não houvesse feito nada. Resolveu, por fim, fazer o que gostaria de ter feito desde o início: postou-se na exata posição em que se encontrava a estátua, mãos e pés procurando os ângulos até que o encontrassem, e assim ficou. Naquela hora, pareceu perceber que os olhos da estátua lhe devolviam um brilho de admiração e agradecimento, e este olhar aquentou-lhe o coração sem casa. E então – porque talvez fosse, naquele dia, a primeira vez que alguém lhe prestava alguma atenção, resolveu ficar, decidido a ser mais estátua que a própria estátua.
Mas a alva pitonisa – que também crescera sua dureza pelas noites e dias das ruas -, naquele instante, decidiu que um menino iniciante não poderia ser mais estátua do que ela. Respirou fundo, num movimento cênico – ele também respirou fundo -, e ambos pareceram ter resolvido ao mesmo tempo e numa espécie de bem humorado desafio mudo, que não sairiam de seu lugar enquanto o outro não se mexesse, ninguém a esperá-los em suas solidões.
Há dois domingos estão lá, imóveis, pobres espelhos sem destino, e o vento de outono já levou as notas mirradas que repousavam, raras, no potinho. Mas não se mexem por nada, dispostos a não perderem aquele duelo de talentos sobreviventes, e a verdade é que, hoje, ninguém mais sabe se ambos ainda são gente ou se já viraram pedra.
***
Henrique Schneider é autor do romance "Contramão" (Ed. Bertrand Brasil, 2007) e, em 2007, teve reeditada a novela "O grito dos mudos" (Ed.Bertrand Brasil).

MARCUS MINUZZI e CARLOS BESEN





Nasci querendo tudo.
Bezerro manso.
Ó vaso, mágico.
Venham, comigo, sejamos partícipes.
Compro saquito de pipocas,
No Centro de Porto Alegre.
Há um ventre,
Que me encobre,
A pipoca doce, o Centro.
Centro, dorme.
Parece gozo.
Por que as cidades me tocam?
Soraia, tens a melhor boceta do mundo.
Há mulheres-mundo.
Gosto do mor amor.
- Querido, a cidade não te quer.
Calma, a cidade me sonha
E ainda não sabe.
Valéria.
Se eu pudesse, botava o nome
Da cidade de Valéria.
Vingo-me de Soraia,
Por suas pedras.
O rock,
Nesta cidade,
Me exaspera
.


Poema do livro "VOSSO GOZO - O beijo de moça governará o povo", inédito de Marcus Minuzzi. Leia mais aqui.

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UMA ESTAÇÃO NO AQUÁRIO

Pisando como criança incauta,
o trem organiza a água.
Abrindo de luz a boca,
anda como riacho indiferente ao mar.
O trem ergue a crista
do assobio de metal,
é um galo que esqueceu o pátio
em que desperta apitando para o milho.
O trem marinho se move
como arcada dentária,
se dobra como isca à guisa.
José, João, Maria:
fisgamos o trem,
desjejum da manhã na cor do rio.
Há uma vergonha de vapor,
o trem fecha as portas para esconder
que tem café com céu
para prosseguir com fome.
O trem se isola como mão fechada,
anel de limbo.
João na pele de José,
cada passageiro se encosta
no fio da respiração.
Maria canta chão, cada som
(uma tosse, um suspiro)
já é ruído, punhal.
Cada gomo de água demarca
território, gula de sede.
As línguas só se mostram como faca,
João, Maria e José
se contentam em sentar e permanecer
eretos como tubos de coral
que pendulam como alga.
João espera a sala de desembarque,
José na paisagem toma o trem
como sala de espera,
Maria desponta: aquário,
a sala de espera do trem
é uma televisão de barco.
A saída que não se aproxima
é lâmina engolida,
a língua devolvida à carne
enterra as cinzas nos trilhos.
O trem não encontra luz no fim do túnel,
Maria, José, João,
o trem é a luz azul do túnel.
Sem frear a água da memória,
a lucidez, João, Maria, José,
abre portas como janelas
sem escuro no convexo.
A vida resfolega em atropelos,
logo a lucidez reencontra porão.
A água que balança
imita a onda do fogo,
Maria levita como pluma de brasa,
Maria se pendura nos ferrolhos do trem
como peixe em árvore de prata.
O trem abrindo o rio
corre os caminhos de seiva
na copa de Maria,
e José e João despertencidos
são sementes sobre o redemoinho.
Maria tem galhos
para interrogar os vidros,
Maria tem dedos de folha vária
que se decepam no irrespondido,
Maria não se distingue
entre raiz e tronco e caule e musgo,
Maria ébria como um fruto
conservado na calda,
Maria vasculha seu rosto
no vento que se afoga,
Maria perde os sapatos de concha,
Maria descalça em seu vestido de água,
Maria, uma árvore sem avesso:
Mariárvore, âncora esquecida de começo
.
O trem pára seco,
estanque como fotografia,
a água é um negativo:
João, José,
o trem é uma árvore deitada
seguindo caminho de estação:
José, João, o trem desarvorado
na gaveta da espuma:
- O que não guardamos
ainda nos aguarda.


Poema de Carlos Besen, do livro "Uma luz no aquário" (Nova Prova, 2006).

Fauna interna de uma fêmea de 22 anos - poema de Julia Debasse

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Outrora toda sorte
de animal estranho e selvagem
vivia dentro dela,
mas uma febre muito alta
os exterminou.

A febre alta se foi
e ela acordou vazia.
Uivos, rugidos, ganidos,
rosnados, trinados,
tudo havia se calado.
Jaguares, lobos, touros,
tigres, águias, coiotes,
cavalos e graúnas,
Todos silenciosos
e extintos.


O corpo ainda quente,
a pele ainda ardia
como uma queimadura de sol;
No leito adoentado
clamou por sua fauna
mas nada recebeu além
de um beijo no olho
e um comprimido.
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Mais Julia aqui

ITINERÁRIO FILOSÓFICO DE UM VELHO MALUCO (Poemas inéditos de Fausto Wolff)


Serve para pedir perdão e devolver este mesmo tempo a todas as princesas do mundo. Às caboclas dou o luar do sertão da paixão cearense. Para as polaquinhas fica a minha potência juvenil. Às outras, o que acharem que preste neste leilão corporal. O poema do sexto ano do segundo milênio quer denunciar a hipocrisia, brigar com a briga, humilhar a reação. Além disso, vai trazer de volta, via Sedex, aquele sorriso maroto que eu tinha em 46. Vai me devolver a música dos anos 60 e todas as mocinhas que jamais envelheceram aos meus olhos, preparados para a dor, a lágrima, a guerra, o horror. Não há como receber toda a beleza do mundo sem proteção. A beleza contida no feio, no reles, no ridículo. Esta é a hora da comunhão. É a hora de dançar uma dança tão amável que ignora a falta de pontes; que ignora o piscar dos teus olhos, que deste para o enfermeiro que me carregava para a ambulância ferido de abrupta harmonia e pronto para morrer devidamente morfinado de amor finado. Pronto para ser enterrado no quintal do outro lado do muro ao som de um oboé meio xucro.

Os elementos da poesia são tão pequenos que costumam se esconder atrás dos átomos. Eles são o canto do pássaro; o canto não iniciado do pássaro que não teve tempo para a vida antes de morrer. Os elementos da poesia podem ser gigantescos ou invisíveis. O pedaço da minhoca que caiu ao mar, a bolha de água fervente e a ilha que se cria entre o horizonte e o cosmo. Os elementos da poesia são aqueles que dão forma e conteúdo ao verso desde que ele esteja lá. O verdadeiro poeta não é. Ele se anula na chuva e se confunde com o sol da manhã. O poeta não existe. É um fantasma que passa pela Av. Rio Branco sem ser percebido. Logo, não é. O poema é um pedaço descuidado da harmonia de um dia turbulento. Imperceptível aos olhos o poeta não é e a poesia não se permite ser. Logo, não precisamos nos preocupar.

Quando o vazio me ataca entre o princípio e o fim de um gesto, sou rodeado por todos os meus amigos, os bem próximos, os que estão longe, os que me lembram e os que acham que os esqueci. Mortos ou vivos, recentes ou antigos, gostaria que soubessem que os amo muito no profundo da mente. Estou com eles ao amanhecer, e até mesmo ao me embebedar de passado no incerto anoitecer. Quero que saibam que se não os procuro, penso neles. Se os procuro e não acho, eu todo me desatarraxo. Pois que a minha vida sempre foi assim. Eu, longe, cabisbaixo, tentando como um louco apanhar os carinhos, os sorrisos, os pequenos elogios dirigidos a mim.

Um dia nós ainda riremos muito disso tudo. Um dia, cujo nome não saberemos, melhor, ainda não saberemos, pois poderá ser uma noite anônima e levemente abafada de si mesma. De qualquer forma, tenho certeza, daremos boas gargalhadas. No meio dessa farra juvenil alguém poderá se dar conta de que talvez nós não sejamos nós realmente. Quem pode nos assegurar que nossas incríveis aventuras aconteceram de verdade? E, em caso positivo, se éramos nós os protagonistas? Alguém poderá sugerir que fujamos; que atravessemos o rio. Mas o mesmo terror das seis da tarde se recolherá como um prisioneiro para dentro dos nossos corações. Dentro da prisão perpétua, colados à parede negra como um almanaque cuja imagem ignoramos, voltaremos às nossas elucubrações filosóficas: "E se a vida não passasse de uma esperança, de uma história infantil que ninguém escreveu e à qual nos agarramos entre o insuportável e o impossível?".

Eu ia para as Ilhas Canárias; ela para Estocolmo. A vi, de longe, no trem de Amsterdam. Na tarde seguinte, ela nadava na piscina e eu jogava xadrez e bebia uísque com um exagero suicida. À noite tentei convidá-la para dançar mas havia admiradores, representantes de todas as raças e credos, ao seu redor. No jardim, de relance, de repente surgiu ao meu lado, como uma princesa verdadeira dos contos de Grimm. As lágrimas desciam pelos meus olhos de pura felicidade, pois nunca mais precisaria de ninguém e nem precisaria sofrer. A existência dela me bastaria. Disse-me em irlandês arcaico: "Marido meu". Fui atrás dela, que, como personagem de um conto de fadas, evaporou-se, confundiu-se com a noite espanhola, deixando-a ainda mais bela. Hoje, tantas décadas depois, alguém vive a minha vida ao lado dela e eu escrevo livros para dar um sentido à vida que me foi roubada num momento de maldita indecisão na gare de Amsterdam. Hoje vago pelo mundo entre o bar e a seção de achados e perdidos, como quem procura um rosto que já não lembra num tempo que já não tem.

Mais FW aqui

MAISQUEMEMÓRIA


Raríssimas carreiras literárias têm a consistente coerência que Marcelo Backes impõe a sua. Por favor, não confunda coerência com repetição. Digo isso porque Marcelo tem tudo a seu dispor para ser mais um doutor, ou melhor, ele é um doutor, mas diferente da grande maioria dos seus colegas, não é um doutor especialista. Se você, desconfiado leitor, associar especialista a acomodado, não se condene, pois “é por aí”. Quem duvidar pode tirar a prova com este maisquememória, seu livro mais recente que teve lançamento no dia 26/07 na Livraria Argumento-Leblon, Rio. maisquememória tem como subtítulo caderno europeu de viagens, mas caderno das verdades não ficaria nada mau, visto que Marcelo faz da verdade, uma verdade até certo ponto acusatória, a matéria prima do seu livro. Em tempos de honestidades raquíticas, verdades opulentas nos exigem inúmeras reflexões.
Se Campos de Carvalho em sua viagem pela Europa escrevia cartas para ele mesmo e isso não o fazia menos irônico, mordaz e o contraponto era sempre a pátria amada idolatrada salve, salve; Marcelo se diferencia pela ausência de timidez e, seguindo a mesma partitura, divide com você, privilegiado leitor, suas rascantes impressões. O narrador faz um tour pela história da Alemanha e das artes de modo geral. Importante ressaltar que o autor faz questão de enfatizar sua origem de colono de ascendência alemã nascido num lugarejo minúsculo do interior do RS pouquinha coisa maior que o meu torrão natal. Impossível falar de maisquememória sem lembrar de A arte do combate e Estilhaços, a consistente coerência lá da primeira linha, recorda apressado leitor?
Em A arte do combate, Marcelo conta o seu indiscutível cânone literário alemão; em Estilhaços, mostra como é possível exercitar os gêneros num só livro e vai do aforismo ao mini-conto (é moda, eu sei, mas sai dessa, Marcelo) passando pelo biografismo, ensaio, poesia e no fim podemos dizer que concluímos a leitura de um romance. maisquememória é tudo isso ao mesmo tempo e se você, ciumento leitor, pensou em confusão pode tirar seu cavalinho do toró, pois o que resulta daí é claro, cristalino, uma aula que estimula e permite a você, assim como eu, tosco leitor, se dizer baixinho: se ele pôde eu também posso. E de página em página você se sentirá numa viagem prazerosa onde de cada rua trará uma saudade.
Da consistente coerência resta ao Marcelo a solidão e o silêncio comprovantes do seu “passo errado” que se enaltece a sua obra afastando-o da planície da chatice também o joga para o alto da cordilheira onde a mídia o ignora. Infelizmente! Enquanto isso os santiagos e os nazarians não descem da crista da onda. Mas mudanças, como você pode perceber melhorado leitor, se anunciam.
Marcelo Backes soube preencher com originalidade e precisão esse seu indispensável caderno europeu de viagem. Nele, sabe ser Erasmo, não ofende o ensaismo de Montaigne quando insere, de cabo a rabo de seu relato, a sátira e o humor próprios de Rabelais. Isso tudo sem esquecer jamais o seu/nosso Rio Grande do Sul.
Minha religião é a estética, diz o narrador de caráter duvidoso - sou um consumidor no shopping das oportunidades. Compro à vista e amo a prazo, curto prazo! - à pg.111 e isso é um perigo, vide Ariano Suassuna, influenciável leitor, mas mesmo assim podemos optar pela abrangência maior tanto da religião como da estética e deixemos os limites e os ranços bairristas para o Ariano et caterva. É justamente a estética como religião que impede a malversação da ética, e nesse quesito Marcelo Backes é implacável, a questão social é constante em seus livros, para ser mais claro: o que Saramago faz com mão de ferro o “guri missioneiro” faz com sutil erudição. Você, confuso leitor, ouviu o narrador, pois ouça agora o autor: Há mil maneiras de se ver as coisas desse mundo, lamentavelmente a maior parte delas corresponde à visão de pessoas que jamais tiveram algum tipo de sofrimento.
Marcelo dá um bônus ao leitor, o intermezzo onde relata episódios da vida do sofrido pintor Oscar Kokoscha e aproveita para realizar breve e indispensável ensaio sobre amor e erotismo. Imperdível, paciente leitor.
Enfim, se a vida não é bonita, viver é uma beleza em permanente construção e a ferramenta indispensável para o que quer que seja que se queira ser é a imaginação. Convém lembrar que os burros não têm imaginação, ó acomodado leitor!

Luiz Horácio, escritor e jornalista, autor de “Perciliana e o pássaro com alma de cão”, 2006. lhoracio57@uol.com.br

Falantes fiéis do português do Brasil inteiro, uni-vos!


Manifesto em defesa da nossa língua
Alaor Barbosa


Um perigo ameaça a língua portuguesa no Brasil: o de se transformar em mero dialeto de um povo cuja maioria terá passado a falar o inglês. Se continuar o atual processo de suplantação do português pelo inglês, em velocidade que tende a aumentar com o passar do tempo e com a acumulação de forças da concorrente inimiga, dentro de cem anos, cento e cinqüenta, duzentos, o inglês se tornará a primeira língua da maioria dos brasileiros e o português a segunda.
Esse fenômeno tem precedentes históricos significativos e alarmantes.
Um caso recentíssimo: o mais importante escritor tcheco do século XX, Franz Kafka, nascido em Praga, na Boêmia, então pertencente à Áustria, escreveu em alemão porque a língua tcheca só era falada na Boêmia por camponeses: a língua culta e oficial da Boêmia era o alemão. O fato de ser o inglês atualmente o idioma oficial da Índia nos adverte de que a antiguidade – ainda que multimilenar – das culturas nacionais não as defende do perigo de dominação estrangeira.
Poucos meses atrás, fiquei indignado aqui em Brasília contra um besta de um executivo que descia com outro executivo no mesmo elevador que eu, porque ele expressou, com desdém e cinismo, no seu sotaque que me pareceu carioca, a opinião de que a língua portuguesa já morreu no Brasil e de que necessitamos adotar logo a língua inglesa.
Os principais responsáveis pelo processo de substituição do português pelo inglês no Brasil são os comerciantes, os industriais e muitos dos profissionais que trabalham para eles – publicitários e jornalistas. Mormente os de São Paulo. Essa gente pensa que nomes de loja e de marca industrial, para venderem, têm de ser ingleses. Um pequeno, miúdo exemplo: uma loja de Goiânia, com filial em Brasília, com nome de uma nação indígena do rio Araguaia, adotou anos atrás um nome inglês, certamente impelida pelo pensamento de que nome indígena era feio e comercialmente impróprio e o nome inglês muito mais comercial e bonito. Tenho visto textos em jornais e revistas de São Paulo com frases em que a metade das palavras são inglesas.
Desde um decênio ou um pouco mais para cá, existem escolas de ensino de inglês em tudo quanto é cidadezinha do interior do Brasil. Já está sepultado no passado o tempo em que no Brasil só havia dessas escolas nas principais capitais. É avassalador – e parece irresistível – o processo de colonização idiomática no Brasil.
O aspecto das ruas centrais das capitais brasileiras (e não somente delas) pouco difere do das cidades americanas: os painéis e letreiros são em grande número escritos em inglês.
Se a língua portuguesa é a nossa pátria (para mim o é, assim como para Fernando Pessoa, o primeiro que o disse nestes termos), atentar contra ela ou omitir-se na defesa dela são crimes de lesa-pátria.
A Constituição do Brasil afirma que o português é o nosso idioma oficial. Todo ato que signifique infirmar esse imperativo constitucional é deve ser repelido, por ser antibrasileiro. Este é um aspecto jurídico da questão. No aspecto lingüístico-estético, tenho que o português é muito mais bonito e capaz de expressão do que o inglês. Muito melhor “centro de compras” do que “shopping center”, e assim por diante em todos os casos. Nada mais irritante e ridículo do que dizer “mídia” em vez de “media” (vocábulo latino que os americanos pronunciam à sua maneira e muitos brasileiros subservientes importaram do inglês).
Viva a língua portuguesa! Salvemo-la dos seus (nossos) inimigos!

Entrevista com a escritora Ana Paula Maia







Agora, ouvindo trechos da entrevista que fiz com a escritora carioca Ana Paula Maia, chego a algumas conclusões. Primeira: sou péssimo repórter. Falo demais e de modo incompreensível – Ana também fala bastante, e de vez em quando dá belas gargalhadas. Segunda: não faça entrevista num bar lotado. Mas, estando num, pelo menos beba.
A melhor maneira de conhecer um escritor não é lendo seus livros, mas vendo como ele se mexe. Assim, percebemos melhor de onde vem seu ritmo, suas lacunas, suas ondas sonoras, suas obsessões. Porque tudo isso pode ser filtrado de forma coerente no texto, mas escapa aos movimentos mais sutis.
Confesso que a primeira coisa que me impressiona em Ana Paula Maia é o fato de ela não beber. Ela bebe Mate Leão e eu tomo cerveja, sozinho, o que, pela tensão comum aos primeiros encontros, acontece com certo excesso. Desculpe, Ana Paula, por tantas idas ao banheiro e pela tagarelice. Como não sou profissional, descobrir que a autora de “Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos” (
www.folhetimpulp.blogspot.com), com tanto cinema e tanta literatura e tão pouco verniz, como ela mesma diz, descobrir que ela não bebe álcool me deixa tenso, fora de sintonia. Começo a transpirar.
Ana Paula tem 27 anos, mas tudo nela parece sem idade, antigo mas sem idade, tudo nela tem uma distância firme, atávica, como se eu estivesse conversando com alguém de verdade, sem trejeitos forjados.
Ela realmente não parece ter nada a ver com os personagens que constrói com uma brutalidade tão realista, que chega a ser terna. E ela é terna fora das sensações, fora do sentimental, ela é terna no concreto das coisas e das relações, ela passa isso com os olhos. É vagarosa, escuta atentamente e fala bastante, com entusiasmo. “Eu falo muito mesmo. As velhinhas me adoram”.
Então pergunto de onde vem tanta violência. Ela diz que vem da rua, é parte do nosso dia-a-dia, tanto que a gente nem dá bola. E me conta uma história de duas primas, uma boa e alegre, a outra má e soturna, ambas irmãs, e que um dia a prima boa e alegre cantava, a má e soturna pedia que ela se calasse, e ela cantava. Então a prima má veio com um garfo na mão, enfiou na barriga da irmã alegre, voltou à cozinha e continuou a comer.
Quando Ana termina a história, percebo de onde vem tudo. Uma rápida discussão sobre métodos de escrita. Ela diz coisas interessantes como: “mais importante do que falar sobre o personagem é deixar o personagem falar. Se eu falo que o Leo é assim ou assado”, explica, “você pensa que ele é isso e ponto. Mas se eu deixo o Leo mostrar o que ele é, pronto, aí sim você pode conhecê-lo”.
Existe algo ali na ponta dos olhos, existe sim uma certa ternura pela naturalidade da violência. Então tenho a idéia silenciosa de que Ana Paula Maia seja uma hiper-naturalista, o que, logicamente, deve ser uma grande bobagem, mas pode ter sentido.
De fato ela diz que não quer ser apenas observadora do mundo, quer inventar um mundo novo para povoá-lo do que talvez Ana não seja, mas está vivo dentro dela. O lado ambicioso de Ana Paula é moderado, mas firme. E ela parece realmente uma pessoa que ainda vai fazer muita coisa.
Cada um de seus personagens é reflexo direto de um mundo criado, por isso estouram facilmente nas páginas, a ponto de fazer você pensar que Ana Paula Maia realmente tenha matado um porco, ou apostado numa rinha de cães, ou desovado um agiota. “Tenho horror a porco”, ela diz, “aquele barulho que eles fazem”. “Sim”, eu respondo, “é horrível o medo que eles têm da morte”.
Mas nem eu nem ela entendemos de porcos. É pura literatura, eu penso, e isso me deixa nervoso. Peço mais um chope, começo a tremer nas pernas. Ana Paula é extremamente delicada e sutil. “Acho que está na hora de você ir ao banheiro outra vez”, ela comenta com um sorriso. Envergonhando, peço desculpas, me levanto.
Reparo na figura de Ana do alto da escada, enquanto espero a vez para usar a latrina. Ela folheia o último exemplar do “Jornal Vaia” que eu lhe trouxe, uma edição só de contos, mas parece estar pensando noutras coisas, em muitas coisas. Ela é realmente calma, mas sinto que há uma violência reprimida em algum lugar que não consigo alcançar ainda.
Desço pensando: “fale de influências, clichês, invente alguma coisa!” Ela me diz que na verdade não gosta muito de falar sobre literatura. Fico aliviado. Falamos então sobre amenidades. Cenas da novela “Vale Tudo”, Aracy de Almeida no Show de Calouros, seriados de televisão, regras de relacionamento. Então descubro que ela adora John Fante. Conversamos bastante sobre John Fante, de quem fala com um brilho estranho nos olhos.
Quando eu já estou no meu quinto o chope, e ela no segundo Mate, a conversa começa a ficar um pouco confusa, e Ana começa a dizer coisas enigmáticas e bonitas, como: “eu escrevo sobre o submundo da alma”. E nós dois rimos quando ela diz que existe uma substância no Mate que deixa a pessoa alterada.
Voltando rapidamente à literatura, ela diz que é importante viver para ter sobre o que escrever. “A gente tem meio que se embrenhar. Eu aceito qualquer convite, vou a todo lugar”.
Sobre a crítica, conta que “muita opinião às vezes atrapalha”, e que só presta atenção nas que falam bem dela. “Você não deve absorver a crítica antes de saber o que está fazendo”. Mas Ana fala isso tudo sorrindo, na verdade não dá muita bola. Ela sabe o que tem que fazer, e faz. E sabe que tem um belo sorriso, então sorri.
Diz que fica irritada se perguntam a ela por que faz o tipo de literatura que faz, e não outro. “Ora, porra, meu irmão, por que eu gosto, porra!”, ela diz, e eu fico pensando se não vai finalmente pedir um chope ou pelo menos um conhaque.
Sou mesmo um amador, romantizo tudo, sou deslumbrado com as coisas e com a personalidade das pessoas. Tento fazê-la gargalhar outra vez. Está aí uma característica marcante em Ana. Ela parece realmente determinada a fazer o que quer fazer, e diz que a partir do momento em que você concebe um universo pessoal, dele brotam naturalmente o estilo, e os personagens vêm jorrando.
Isso parece fácil vindo da boca de Ana. Ela nunca gagueja. Tem movimentos muito elegantes e desliza mais do que anda. Parece um gato e tem uma risada sensacional, de azeitar os tímpanos. Mas é discreta e às vezes enrola seus cabelos com a ponta dos dedos. É realmente difícil, a princípio, bebendo sozinho, ou seja, órfão, conversar com Ana Paula olhando nos seus olhos. Ela tem uma boca cheia que chama muita atenção, por isso precisei me conter para não parecer um idiota. Mas com o tempo você se acostuma com os olhos e começa a gostar de olhar para eles. Afinal, ela ouve Johnny Cash. E uma dama que ouve Johnny Cash é uma dama de classe, merece respeito.
Fala calmamente, mas de modo seguro, e fala com tanta propriedade e detalhes sutis sobre os seus personagens e sua estrutura narrativa, que chega a parecer algo místico, bruxaria. Ela inclusive confessa que, durante o processo criativo, muitas vezes tem assombrações, e precisa abandonar tudo por uma ou duas semanas.
Escrevendo “A Guerra dos Bastardos” (Ed. Língua Geral - 2007), seu segundo romance e mais novo lançamento, enquanto dormia, uma noite ela sonhou que era observada por Edgar Wilson, protagonista que perpassa quase toda a sua ficção, olhando para ela da janela, e ela de mãos dadas com um braço decepado.
Ana sabe a cor do cabelo, dos olhos, a forma do maxilar de seus protagonistas, e me descreve com precisão Edgar Wilson, nome dado como homenagem ao escritor americano Edgar Allan Poe. Meu ponto alto na entrevista. Ela parece impressionada, finalmente. “Sim”, diz, “é uma mistura de Poe e William Wilson (personagem alter ego de Poe). Estou chocada! Como você descobriu isso? William Wilson, no conto do grande Poe, vivia com medo de encontrar seu sócia, sua reprodução por aí. Sua cara estampada em outro. É um conto alucinante!”.
“Essas descrições físicas estão no livro?”, eu pergunto. “Não”, ela diz. Ana Paula é tão exata na forma e parece tão relaxada quando fala da estrutura da sua ficção, que acaba sendo como o cineasta que exige determinada calcinha na gaveta de um armário vitoriano antes de filmar uma cena externa de guerra. Inclusive, ela adora cinema, começou com cinema, escrevendo um roteiro. Táxi Driver, Paris Texas, lugares desérticos, lugares arruinados, lugares onde as coisas são explícitas, onde a ternura está na doçura da morte e do compromisso de lealdade entre filhos bastardos.
Os personagens de Ana Paula são tipos católicos, joice-fanteanos, todos cheios de culpa e necessidade de alguma redenção, todos penitentes e fiéis apenas aos seus deveres. Por isso matam com facilidade, mas não são sanguinários: fazem a coisa apesar do sangue. Estripam porcos como quem vai ao cinema. Mas existe ali um atavismo crônico, uma lealdade humilde, quase cabisbaixa, uma aceitação gloriosa da necessidade perene, que tem o cheiro e a cor dos melhores russos.
Existe algo no pouco que vi da literatura e na pessoa de Ana Paula Maia, algo como um calo universal eterno, bem ali na violência e na indiferença, mas, principalmente, na persistência dos personagens em diferentes enredos. Algo próximo da natureza essencial das coisas. E é algo tão fresco, renovado, ritmado, sônico, que ficamos cheios de ternura com o abjeto, com o geral, portanto até com os homens, e com isso nos tornamos melhores, por inversão.
Pode até não parecer a princípio, mas no fim repara-se que talvez a literatura de Ana Paula Maia tenha, entranhada nas tripas dos seus porcos e nas suas fossas abertas, a habilidade de nos revelar a verdadeira natureza do ser humano. E quanto mais o ser humano conhece a sua própria natureza, melhor ele se torna. Então não seria absurdo dizer que a literatura de Ana Paula Maia é cheia de vida, e pulsa no ritmo da cidade grande, como um coração que, mesmo machucado, cumpre o seu dever.
Talvez seja necessário também dizer que Ana Paula é tão casca grossa que, após escrever despretensiosamente um roteiro para curta-metragem na faculdade, partiu logo para a prosa longa. E estreou com um romance, escrito na pauleira de dois meses e meio: “O Habitante das Falhas Subterrâneas” (Ed. 7 Letras - 2003). Tocou bateria numa banda punk, leu filosofia, aprendeu a fazer diálogos com Platão e a narrar com Júlio Verne.
Entre os mortos, gosta de Nelson Rodrigues, Edgar Allan Poe, Dostoiévski, John Fante, Schopenhauer, ou seja, uma turma da pesada. Entre os vivos, Ana cita Santiago Nazarian, com quem diz trocar muitas figurinhas, o gaúcho Daniel Galera, falamos também em Marcelino Freire, Marçal Aquino, Marcelo Mirisola. Mas ela não deixa de alfinetar: “as pessoas têm que parar de falar que influência literária é só Dostoievski”, afirma. “Influência pode ser também Chuck Norris”.
Percebe-se rapidamente em Ana Paula e nos seus textos que, para atingir a beleza, é preciso um bocado de violência. O resto é maquilagem. E eu mesmo paro comigo e penso agora, enquanto tento escrever sobre a literatura de Ana Paula Maia: “é isso, ela tem razão, queria escrever algo bonito sobre ela, algo valioso, e veja só como sofro, como suo frio e não consigo, como estou na terceira dose de uísque, e nada”.
A violência não pode ser rejeitada ou figurativa: vira caricatura. E a violência compõe os alicerces de toda sociedade, em todos os tempos. Ausência ou excesso de violência. O mundo gira em torno disso. Ana parece perceber isso com certo carinho e, pelos olhos de gato, olhos que parecem olhar para tudo, mesmo que sempre olhando para frente, pelos olhos ela parece dizer que, na merda, as emoções são mais fortes. “Mas é para isso que servem os escritores”, acrescenta. “Eles escrevem e os leitores lêem. Eu crio os porcos, você faz as salsichas e lingüiças e os outros compram e comem. Criar porcos e escrever livros segue um padrão de produção semelhante, você não acha?”.
Sim, eu acho, Ana, fico nervoso, as mãos estão suadas. Pensando: como ela pode falar sobre essas coisas com tanta naturalidade? Ela mesma explica, citando Einstein: “a imaginação é mais importante que o conhecimento”. Mas não me contento, há algo a mais naqueles cabelos volumosos, naqueles lábios cheios que se mexem calmamente e com vigor, naqueles movimentos delicados, tudo tão calmo, lúcido, tudo tão tranqüilo quanto um matadouro de porcos, mas assim não é possível!
No fim de tudo ela me deixa pagar a conta, afinal, é uma dama verdadeira. Nos levantamos e eu pergunto se não teria problema fazer uma última pergunta bem piegas, plágio tirado de um livro de entrevistas da Clarice Lispector. Ela ri, inclina a cabeça, então eu digo: “qual é a coisa mais importante do mundo?” Sem pensar muito, Ana responde: “o meu universo”. Já meio grogue, eu emendo: “e o que faria você desistir desse universo?”. “A morte”, ela diz, me dá um abraço bom e vamos um para cada lado.



CITAÇÕES :
“Se você construir uma coisa de verdade, transmitir alguma idéia, você primeiramente vai procurar um caminho para chegar a essa idéia. E então você bota no papel o que você já construiu, que já está dentro. E isso é o seu dia-a-dia, as suas vivências, o que você pensa, é uma frase que você escutou ou viu em algum lugar, é um crime que você viu na esquina, é um afago que você fez no cachorro. Quando você escreve, estas emoções se libertam. A influência da sua infância, as surras que você tomou, isso é literatura. Coisas pessoais que você transforma em palavras e encontra uma maneira de narrar aquilo”.
“Comecei a ler e escrever alguma coisa com 18 anos. Imagina o que eu já tinha vivido até os 18 anos! É muito mais do que de lá até agora. Então as minhas principais influências são muito mais do que foi vivido, e não tanto do que foi lido”.
“O diálogo é mais democrático do que a descrição narrativa. Dizer que é de um jeito tem menos força que mostrar o jeito”.
“Eu sou sem noção para escrever”.
“Os críticos tentaram, mas não conseguiram me encaixar em nada”.
“Detesto essa literatura chá-das-cinco”.
“Solidão é um momento em que as coisas silenciam”.
“Acredito que a literatura é feita por degenerados sobre degenerados”.
“Ficar imaginando uma história pra contar. Pra entreter. Informar. Mas é pra isso que servem os escritores, eles escrevem. E os leitores, lêem. Eu crio os porcos, você faz as salsichas e lingüiças e os outros compram e comem. Criar porcos e escrever livros segue um padrão de produção semelhante, você não acha?”.
“Não insisto em trazer o texto para a minha realidade. O que faço é regurgitar minhas idéias, meu cotidiano e minhas impressões”.
“Desconsidero sexualidade quando o assunto é literatura, ao menos a que faço”.



TRECHO DO ROMANCE “A GUERRA DOS BASTARDOS”:
“Gotas de suor escorrem pelas costas. Sente queimar a pele, sufocar os poros. A cauda de serpente contornando o umbigo expele bolinhas de suor que borbulham da pele. O pescoço aquece, a garganta incandescente do dragão fritam seus pensamentos, suas garras fincadas nas costelas, as asas querendo transportá-la para uma outra dimensão.

Gina Trevisan faz muitas flexões. A musculatura da barriga divide-se em contornos sulcados profundamente. Enquanto os músculos trabalham, os pensamentos ventilam, o coração amortece.
De pé, agarra a barra de ferro atravessada no alto da janela da sala, de frente para o sótão. Sobe e desce e agora seus braços esforçados reagem ao deixarem em evidência veias salientes, dilatadas. Sua pele branca está vermelha. Todo seu corpo está vermelho. O dragão nas costas enfurecido disposto a dragar a areia, o lodo entulhado no fundo do lago de seu espírito, do oceano de seus pensamentos. Ela transpira as horas incompetentes, o coração dilacerado, o medo, as surras, os conselhos da mãe, a musgosidade dos dias e o inquebrantável silêncio que sonda sua alma, sem deixar brechas para tomar resoluções. Gina Trevisan transpira-se”.



PUBLICAÇÕES DA AUTORA:
Romances:
"
O Habitante Das Falhas Subterrâneas" (ed. 7 letras _ romance/2003).
Antologias:
25 Mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira” (Ed. Record - 2004), Sex´n´Bossa (Ed. Mondadori - Itália/2005).
Contos sobre Tela” (Ed. Pinakotheke - 2005)
*e mais uma antologias a ser lançada neste ano:
“Contos para ler fora do armário” (Ed. Record - 2007) - organizada por Santiago Nazarian e Marcelino Freire.
Internet:
2006 - "Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos" (
www.folhetimpulp.blogspot.com).
*primeiro folhetim pulp da internet brasileira.
2007 - "Barbudos Cretinos e suas histórias canalhas” (
www.barbudoscretinos.blogspot.com).

por Leonardo Marona

Nei Lopes

O REI DO GATILHO NO MORRO DO SUPREMO
Foi brabo! De repente, não mais que derrepentemente, o João Pessoa, que escreve lá seus versinhos e faz lá seus forrozinhos, entrou doidão, tresoitão em punho, na “Casa de Noca”, que é o pé-sujo mais típico aqui perto do Lote - na subida do Morro do Supremo - e, mesmo quase caindo, apertou três vezes na direção do Cabedelo, seu conterrâneo e ex-amigo. No Estado em que estava, João Pessoa, mesmo apertando a queima-roupa, só conseguiu acertar uma ameixa no pobre do Cabedelo. Mas já viu, né? Foi na lata, na cara, arrancando três dentes, um pedaço da língua e fazendo um rombo des’ tamanho na fisionomia do desditoso ex-amigo e ainda conterrâneo. O negócio foi feio. E as mulheres, como sempre nervosas, gritavam: - Ai, minha Nossa Senhora! Socorro! Chamem um médico! O homem está se esvaindo em sangue! Era tudo um grande bafafá, um bololô, um trelelê. Era o cão chupando manga. siga lendo

Todo Prosa

"Machado, Borges, Perrone-Moisés
No recém-lançado “Vira e mexe, nacionalismo” (Companhia das Letras, 248 páginas, R$ 45,50), a melhor coleção de ensaios literários brasileiros que leio em muito tempo, Leyla Perrone-Moisés reflete a certa altura sobre a curiosa semelhança, quase ponto a ponto, entre os argumentos de Machado de Assis e Jorge Luis Borges em seus textos teóricos sobre (e contra) o nacionalismo literário – respectivamente, “Instinto de nacionalidade” (1873) e “El escritor argentino y la tradición” (1956). Não à toa, os dois universais escritores latino-americanos são também os mais universalistas (“devemos pensar que nosso patrimônio é o universo”, escreveu Borges) e sofreram, ambos, ataques pesados por uma suposta deficiência de “cor local”.
Escreve Leyla Perrone-Moisés:
Tanto Machado de Assis como Borges são demasiadamente lúcidos para aceitar a nacionalidade como uma essência ontológica. Perfilado por detrás da persona do Conselheiro Aires, tão finório quanto este, o romancista brasileiro encara o problema com ironia (…) Ambos os escritores são finos cultores da ironia, justamente aquela que falta aos nacionalistas; uma falta de ironia decorrente de sua incapacidade de distanciamento e de seu apego a uma mitologia metafísica que conduz à guerra, ou simplesmente ao ridículo.
Num momento em que as metrópoles culturais renovam pela cartilha do multiculturalismo suas velhas exigências de visto de entrada para autores de culturas periféricas ou, como anda na moda dizer, pós-coloniais (“encham seus livros de cor local, selvagens!”), o paralelo traçado pela ensaísta entre Machado e Borges é de uma riqueza estonteante. Mesmo a obsessão ficcional de Antonio Fernando Borges, que reúne os dois autores em seu romance “Memorial de Buenos Aires”, tinha me deixado cego para as semelhanças, digamos, de estratégia literária entre eles, por mais que o resultado estético tenha sabor diferente – ou, em certos casos, nem tanto.
Universalistas, Machado e Borges não são subservientes copistas. Pelo contrário: sua arrogância de reescritores do mundo é monstruosa. A síntese universal que buscam a partir de uma cátedra caudatária (de sul-americanos, ora pitombas!) pode ser impossível de antemão, mas se realiza por inteiro, gloriosamente, no plano da ironia.
Machado:
Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim – flagelos e delícias –, desde essa cousa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo.
Borges:
Nesse instante gigantesco, vi milhões de atos prazerosos ou atrozes; nenhum me assombrou tanto como o fato de que todos ocupassem o mesmo ponto, sem superposição e sem transparência. (…) Vi o populoso mar, vi a aurora e a tarde, vi as multidões da América, vi uma prateada teia de areia no centro de uma negra pirâmide, vi um labirinto roto (era Londres), vi intermináveis olhos próximos perscrutando-me como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu…
Eu vi o Aleph no delírio de Brás Cubas."
Mais Sérgio Rodrigues aqui!

As vampirescas do Leo Felipe

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE
Capítulo 18 - Rock pauleira
Parte II
Foi bastante natural a aproximação da gurizadinha punk rock ao nosso ambiente insalubre, sujo e completamente refratário à caretice. Uns bebedores de vinho vagabundo que curtiam a fala esperta do Jello Biafra, idolatravam os Ramones e tinham o maior respeito pelo, como diria o Professor Getúlio, pai deles: Iggy Pop, mister pauleira in person. Essa turminha se sentiu em casa no Garagem, Terra do Nunca onde o Peter Pan usa piercing, Peter Punk. Os Torto e Os Thompsons, com seu punk rock escrachado e tosco, e Os Alcalóides, que sintetizavam Debbie Harry e Rita Lee (fase Mutantes) na figura da vocalista Júlia, faziam shows com lotação máxima de um público que pertencia a uma outra geração. Eu já tinha passado dos 20 e me sentia um senhor experiente diante daqueles fedelhos de 15 anos que agora frequentavam o bar. A Space Rave do casal Edu & Mari, sob inúmeras variações de elenco coadjuvante, seguia arregimentando...
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