Todo Prosa

"Machado, Borges, Perrone-Moisés
No recém-lançado “Vira e mexe, nacionalismo” (Companhia das Letras, 248 páginas, R$ 45,50), a melhor coleção de ensaios literários brasileiros que leio em muito tempo, Leyla Perrone-Moisés reflete a certa altura sobre a curiosa semelhança, quase ponto a ponto, entre os argumentos de Machado de Assis e Jorge Luis Borges em seus textos teóricos sobre (e contra) o nacionalismo literário – respectivamente, “Instinto de nacionalidade” (1873) e “El escritor argentino y la tradición” (1956). Não à toa, os dois universais escritores latino-americanos são também os mais universalistas (“devemos pensar que nosso patrimônio é o universo”, escreveu Borges) e sofreram, ambos, ataques pesados por uma suposta deficiência de “cor local”.
Escreve Leyla Perrone-Moisés:
Tanto Machado de Assis como Borges são demasiadamente lúcidos para aceitar a nacionalidade como uma essência ontológica. Perfilado por detrás da persona do Conselheiro Aires, tão finório quanto este, o romancista brasileiro encara o problema com ironia (…) Ambos os escritores são finos cultores da ironia, justamente aquela que falta aos nacionalistas; uma falta de ironia decorrente de sua incapacidade de distanciamento e de seu apego a uma mitologia metafísica que conduz à guerra, ou simplesmente ao ridículo.
Num momento em que as metrópoles culturais renovam pela cartilha do multiculturalismo suas velhas exigências de visto de entrada para autores de culturas periféricas ou, como anda na moda dizer, pós-coloniais (“encham seus livros de cor local, selvagens!”), o paralelo traçado pela ensaísta entre Machado e Borges é de uma riqueza estonteante. Mesmo a obsessão ficcional de Antonio Fernando Borges, que reúne os dois autores em seu romance “Memorial de Buenos Aires”, tinha me deixado cego para as semelhanças, digamos, de estratégia literária entre eles, por mais que o resultado estético tenha sabor diferente – ou, em certos casos, nem tanto.
Universalistas, Machado e Borges não são subservientes copistas. Pelo contrário: sua arrogância de reescritores do mundo é monstruosa. A síntese universal que buscam a partir de uma cátedra caudatária (de sul-americanos, ora pitombas!) pode ser impossível de antemão, mas se realiza por inteiro, gloriosamente, no plano da ironia.
Machado:
Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim – flagelos e delícias –, desde essa cousa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo.
Borges:
Nesse instante gigantesco, vi milhões de atos prazerosos ou atrozes; nenhum me assombrou tanto como o fato de que todos ocupassem o mesmo ponto, sem superposição e sem transparência. (…) Vi o populoso mar, vi a aurora e a tarde, vi as multidões da América, vi uma prateada teia de areia no centro de uma negra pirâmide, vi um labirinto roto (era Londres), vi intermináveis olhos próximos perscrutando-me como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu…
Eu vi o Aleph no delírio de Brás Cubas."
Mais Sérgio Rodrigues aqui!

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