MAISQUEMEMÓRIA


Raríssimas carreiras literárias têm a consistente coerência que Marcelo Backes impõe a sua. Por favor, não confunda coerência com repetição. Digo isso porque Marcelo tem tudo a seu dispor para ser mais um doutor, ou melhor, ele é um doutor, mas diferente da grande maioria dos seus colegas, não é um doutor especialista. Se você, desconfiado leitor, associar especialista a acomodado, não se condene, pois “é por aí”. Quem duvidar pode tirar a prova com este maisquememória, seu livro mais recente que teve lançamento no dia 26/07 na Livraria Argumento-Leblon, Rio. maisquememória tem como subtítulo caderno europeu de viagens, mas caderno das verdades não ficaria nada mau, visto que Marcelo faz da verdade, uma verdade até certo ponto acusatória, a matéria prima do seu livro. Em tempos de honestidades raquíticas, verdades opulentas nos exigem inúmeras reflexões.
Se Campos de Carvalho em sua viagem pela Europa escrevia cartas para ele mesmo e isso não o fazia menos irônico, mordaz e o contraponto era sempre a pátria amada idolatrada salve, salve; Marcelo se diferencia pela ausência de timidez e, seguindo a mesma partitura, divide com você, privilegiado leitor, suas rascantes impressões. O narrador faz um tour pela história da Alemanha e das artes de modo geral. Importante ressaltar que o autor faz questão de enfatizar sua origem de colono de ascendência alemã nascido num lugarejo minúsculo do interior do RS pouquinha coisa maior que o meu torrão natal. Impossível falar de maisquememória sem lembrar de A arte do combate e Estilhaços, a consistente coerência lá da primeira linha, recorda apressado leitor?
Em A arte do combate, Marcelo conta o seu indiscutível cânone literário alemão; em Estilhaços, mostra como é possível exercitar os gêneros num só livro e vai do aforismo ao mini-conto (é moda, eu sei, mas sai dessa, Marcelo) passando pelo biografismo, ensaio, poesia e no fim podemos dizer que concluímos a leitura de um romance. maisquememória é tudo isso ao mesmo tempo e se você, ciumento leitor, pensou em confusão pode tirar seu cavalinho do toró, pois o que resulta daí é claro, cristalino, uma aula que estimula e permite a você, assim como eu, tosco leitor, se dizer baixinho: se ele pôde eu também posso. E de página em página você se sentirá numa viagem prazerosa onde de cada rua trará uma saudade.
Da consistente coerência resta ao Marcelo a solidão e o silêncio comprovantes do seu “passo errado” que se enaltece a sua obra afastando-o da planície da chatice também o joga para o alto da cordilheira onde a mídia o ignora. Infelizmente! Enquanto isso os santiagos e os nazarians não descem da crista da onda. Mas mudanças, como você pode perceber melhorado leitor, se anunciam.
Marcelo Backes soube preencher com originalidade e precisão esse seu indispensável caderno europeu de viagem. Nele, sabe ser Erasmo, não ofende o ensaismo de Montaigne quando insere, de cabo a rabo de seu relato, a sátira e o humor próprios de Rabelais. Isso tudo sem esquecer jamais o seu/nosso Rio Grande do Sul.
Minha religião é a estética, diz o narrador de caráter duvidoso - sou um consumidor no shopping das oportunidades. Compro à vista e amo a prazo, curto prazo! - à pg.111 e isso é um perigo, vide Ariano Suassuna, influenciável leitor, mas mesmo assim podemos optar pela abrangência maior tanto da religião como da estética e deixemos os limites e os ranços bairristas para o Ariano et caterva. É justamente a estética como religião que impede a malversação da ética, e nesse quesito Marcelo Backes é implacável, a questão social é constante em seus livros, para ser mais claro: o que Saramago faz com mão de ferro o “guri missioneiro” faz com sutil erudição. Você, confuso leitor, ouviu o narrador, pois ouça agora o autor: Há mil maneiras de se ver as coisas desse mundo, lamentavelmente a maior parte delas corresponde à visão de pessoas que jamais tiveram algum tipo de sofrimento.
Marcelo dá um bônus ao leitor, o intermezzo onde relata episódios da vida do sofrido pintor Oscar Kokoscha e aproveita para realizar breve e indispensável ensaio sobre amor e erotismo. Imperdível, paciente leitor.
Enfim, se a vida não é bonita, viver é uma beleza em permanente construção e a ferramenta indispensável para o que quer que seja que se queira ser é a imaginação. Convém lembrar que os burros não têm imaginação, ó acomodado leitor!

Luiz Horácio, escritor e jornalista, autor de “Perciliana e o pássaro com alma de cão”, 2006. lhoracio57@uol.com.br

Nenhum comentário: