Entrevista com a escritora Ana Paula Maia







Agora, ouvindo trechos da entrevista que fiz com a escritora carioca Ana Paula Maia, chego a algumas conclusões. Primeira: sou péssimo repórter. Falo demais e de modo incompreensível – Ana também fala bastante, e de vez em quando dá belas gargalhadas. Segunda: não faça entrevista num bar lotado. Mas, estando num, pelo menos beba.
A melhor maneira de conhecer um escritor não é lendo seus livros, mas vendo como ele se mexe. Assim, percebemos melhor de onde vem seu ritmo, suas lacunas, suas ondas sonoras, suas obsessões. Porque tudo isso pode ser filtrado de forma coerente no texto, mas escapa aos movimentos mais sutis.
Confesso que a primeira coisa que me impressiona em Ana Paula Maia é o fato de ela não beber. Ela bebe Mate Leão e eu tomo cerveja, sozinho, o que, pela tensão comum aos primeiros encontros, acontece com certo excesso. Desculpe, Ana Paula, por tantas idas ao banheiro e pela tagarelice. Como não sou profissional, descobrir que a autora de “Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos” (
www.folhetimpulp.blogspot.com), com tanto cinema e tanta literatura e tão pouco verniz, como ela mesma diz, descobrir que ela não bebe álcool me deixa tenso, fora de sintonia. Começo a transpirar.
Ana Paula tem 27 anos, mas tudo nela parece sem idade, antigo mas sem idade, tudo nela tem uma distância firme, atávica, como se eu estivesse conversando com alguém de verdade, sem trejeitos forjados.
Ela realmente não parece ter nada a ver com os personagens que constrói com uma brutalidade tão realista, que chega a ser terna. E ela é terna fora das sensações, fora do sentimental, ela é terna no concreto das coisas e das relações, ela passa isso com os olhos. É vagarosa, escuta atentamente e fala bastante, com entusiasmo. “Eu falo muito mesmo. As velhinhas me adoram”.
Então pergunto de onde vem tanta violência. Ela diz que vem da rua, é parte do nosso dia-a-dia, tanto que a gente nem dá bola. E me conta uma história de duas primas, uma boa e alegre, a outra má e soturna, ambas irmãs, e que um dia a prima boa e alegre cantava, a má e soturna pedia que ela se calasse, e ela cantava. Então a prima má veio com um garfo na mão, enfiou na barriga da irmã alegre, voltou à cozinha e continuou a comer.
Quando Ana termina a história, percebo de onde vem tudo. Uma rápida discussão sobre métodos de escrita. Ela diz coisas interessantes como: “mais importante do que falar sobre o personagem é deixar o personagem falar. Se eu falo que o Leo é assim ou assado”, explica, “você pensa que ele é isso e ponto. Mas se eu deixo o Leo mostrar o que ele é, pronto, aí sim você pode conhecê-lo”.
Existe algo ali na ponta dos olhos, existe sim uma certa ternura pela naturalidade da violência. Então tenho a idéia silenciosa de que Ana Paula Maia seja uma hiper-naturalista, o que, logicamente, deve ser uma grande bobagem, mas pode ter sentido.
De fato ela diz que não quer ser apenas observadora do mundo, quer inventar um mundo novo para povoá-lo do que talvez Ana não seja, mas está vivo dentro dela. O lado ambicioso de Ana Paula é moderado, mas firme. E ela parece realmente uma pessoa que ainda vai fazer muita coisa.
Cada um de seus personagens é reflexo direto de um mundo criado, por isso estouram facilmente nas páginas, a ponto de fazer você pensar que Ana Paula Maia realmente tenha matado um porco, ou apostado numa rinha de cães, ou desovado um agiota. “Tenho horror a porco”, ela diz, “aquele barulho que eles fazem”. “Sim”, eu respondo, “é horrível o medo que eles têm da morte”.
Mas nem eu nem ela entendemos de porcos. É pura literatura, eu penso, e isso me deixa nervoso. Peço mais um chope, começo a tremer nas pernas. Ana Paula é extremamente delicada e sutil. “Acho que está na hora de você ir ao banheiro outra vez”, ela comenta com um sorriso. Envergonhando, peço desculpas, me levanto.
Reparo na figura de Ana do alto da escada, enquanto espero a vez para usar a latrina. Ela folheia o último exemplar do “Jornal Vaia” que eu lhe trouxe, uma edição só de contos, mas parece estar pensando noutras coisas, em muitas coisas. Ela é realmente calma, mas sinto que há uma violência reprimida em algum lugar que não consigo alcançar ainda.
Desço pensando: “fale de influências, clichês, invente alguma coisa!” Ela me diz que na verdade não gosta muito de falar sobre literatura. Fico aliviado. Falamos então sobre amenidades. Cenas da novela “Vale Tudo”, Aracy de Almeida no Show de Calouros, seriados de televisão, regras de relacionamento. Então descubro que ela adora John Fante. Conversamos bastante sobre John Fante, de quem fala com um brilho estranho nos olhos.
Quando eu já estou no meu quinto o chope, e ela no segundo Mate, a conversa começa a ficar um pouco confusa, e Ana começa a dizer coisas enigmáticas e bonitas, como: “eu escrevo sobre o submundo da alma”. E nós dois rimos quando ela diz que existe uma substância no Mate que deixa a pessoa alterada.
Voltando rapidamente à literatura, ela diz que é importante viver para ter sobre o que escrever. “A gente tem meio que se embrenhar. Eu aceito qualquer convite, vou a todo lugar”.
Sobre a crítica, conta que “muita opinião às vezes atrapalha”, e que só presta atenção nas que falam bem dela. “Você não deve absorver a crítica antes de saber o que está fazendo”. Mas Ana fala isso tudo sorrindo, na verdade não dá muita bola. Ela sabe o que tem que fazer, e faz. E sabe que tem um belo sorriso, então sorri.
Diz que fica irritada se perguntam a ela por que faz o tipo de literatura que faz, e não outro. “Ora, porra, meu irmão, por que eu gosto, porra!”, ela diz, e eu fico pensando se não vai finalmente pedir um chope ou pelo menos um conhaque.
Sou mesmo um amador, romantizo tudo, sou deslumbrado com as coisas e com a personalidade das pessoas. Tento fazê-la gargalhar outra vez. Está aí uma característica marcante em Ana. Ela parece realmente determinada a fazer o que quer fazer, e diz que a partir do momento em que você concebe um universo pessoal, dele brotam naturalmente o estilo, e os personagens vêm jorrando.
Isso parece fácil vindo da boca de Ana. Ela nunca gagueja. Tem movimentos muito elegantes e desliza mais do que anda. Parece um gato e tem uma risada sensacional, de azeitar os tímpanos. Mas é discreta e às vezes enrola seus cabelos com a ponta dos dedos. É realmente difícil, a princípio, bebendo sozinho, ou seja, órfão, conversar com Ana Paula olhando nos seus olhos. Ela tem uma boca cheia que chama muita atenção, por isso precisei me conter para não parecer um idiota. Mas com o tempo você se acostuma com os olhos e começa a gostar de olhar para eles. Afinal, ela ouve Johnny Cash. E uma dama que ouve Johnny Cash é uma dama de classe, merece respeito.
Fala calmamente, mas de modo seguro, e fala com tanta propriedade e detalhes sutis sobre os seus personagens e sua estrutura narrativa, que chega a parecer algo místico, bruxaria. Ela inclusive confessa que, durante o processo criativo, muitas vezes tem assombrações, e precisa abandonar tudo por uma ou duas semanas.
Escrevendo “A Guerra dos Bastardos” (Ed. Língua Geral - 2007), seu segundo romance e mais novo lançamento, enquanto dormia, uma noite ela sonhou que era observada por Edgar Wilson, protagonista que perpassa quase toda a sua ficção, olhando para ela da janela, e ela de mãos dadas com um braço decepado.
Ana sabe a cor do cabelo, dos olhos, a forma do maxilar de seus protagonistas, e me descreve com precisão Edgar Wilson, nome dado como homenagem ao escritor americano Edgar Allan Poe. Meu ponto alto na entrevista. Ela parece impressionada, finalmente. “Sim”, diz, “é uma mistura de Poe e William Wilson (personagem alter ego de Poe). Estou chocada! Como você descobriu isso? William Wilson, no conto do grande Poe, vivia com medo de encontrar seu sócia, sua reprodução por aí. Sua cara estampada em outro. É um conto alucinante!”.
“Essas descrições físicas estão no livro?”, eu pergunto. “Não”, ela diz. Ana Paula é tão exata na forma e parece tão relaxada quando fala da estrutura da sua ficção, que acaba sendo como o cineasta que exige determinada calcinha na gaveta de um armário vitoriano antes de filmar uma cena externa de guerra. Inclusive, ela adora cinema, começou com cinema, escrevendo um roteiro. Táxi Driver, Paris Texas, lugares desérticos, lugares arruinados, lugares onde as coisas são explícitas, onde a ternura está na doçura da morte e do compromisso de lealdade entre filhos bastardos.
Os personagens de Ana Paula são tipos católicos, joice-fanteanos, todos cheios de culpa e necessidade de alguma redenção, todos penitentes e fiéis apenas aos seus deveres. Por isso matam com facilidade, mas não são sanguinários: fazem a coisa apesar do sangue. Estripam porcos como quem vai ao cinema. Mas existe ali um atavismo crônico, uma lealdade humilde, quase cabisbaixa, uma aceitação gloriosa da necessidade perene, que tem o cheiro e a cor dos melhores russos.
Existe algo no pouco que vi da literatura e na pessoa de Ana Paula Maia, algo como um calo universal eterno, bem ali na violência e na indiferença, mas, principalmente, na persistência dos personagens em diferentes enredos. Algo próximo da natureza essencial das coisas. E é algo tão fresco, renovado, ritmado, sônico, que ficamos cheios de ternura com o abjeto, com o geral, portanto até com os homens, e com isso nos tornamos melhores, por inversão.
Pode até não parecer a princípio, mas no fim repara-se que talvez a literatura de Ana Paula Maia tenha, entranhada nas tripas dos seus porcos e nas suas fossas abertas, a habilidade de nos revelar a verdadeira natureza do ser humano. E quanto mais o ser humano conhece a sua própria natureza, melhor ele se torna. Então não seria absurdo dizer que a literatura de Ana Paula Maia é cheia de vida, e pulsa no ritmo da cidade grande, como um coração que, mesmo machucado, cumpre o seu dever.
Talvez seja necessário também dizer que Ana Paula é tão casca grossa que, após escrever despretensiosamente um roteiro para curta-metragem na faculdade, partiu logo para a prosa longa. E estreou com um romance, escrito na pauleira de dois meses e meio: “O Habitante das Falhas Subterrâneas” (Ed. 7 Letras - 2003). Tocou bateria numa banda punk, leu filosofia, aprendeu a fazer diálogos com Platão e a narrar com Júlio Verne.
Entre os mortos, gosta de Nelson Rodrigues, Edgar Allan Poe, Dostoiévski, John Fante, Schopenhauer, ou seja, uma turma da pesada. Entre os vivos, Ana cita Santiago Nazarian, com quem diz trocar muitas figurinhas, o gaúcho Daniel Galera, falamos também em Marcelino Freire, Marçal Aquino, Marcelo Mirisola. Mas ela não deixa de alfinetar: “as pessoas têm que parar de falar que influência literária é só Dostoievski”, afirma. “Influência pode ser também Chuck Norris”.
Percebe-se rapidamente em Ana Paula e nos seus textos que, para atingir a beleza, é preciso um bocado de violência. O resto é maquilagem. E eu mesmo paro comigo e penso agora, enquanto tento escrever sobre a literatura de Ana Paula Maia: “é isso, ela tem razão, queria escrever algo bonito sobre ela, algo valioso, e veja só como sofro, como suo frio e não consigo, como estou na terceira dose de uísque, e nada”.
A violência não pode ser rejeitada ou figurativa: vira caricatura. E a violência compõe os alicerces de toda sociedade, em todos os tempos. Ausência ou excesso de violência. O mundo gira em torno disso. Ana parece perceber isso com certo carinho e, pelos olhos de gato, olhos que parecem olhar para tudo, mesmo que sempre olhando para frente, pelos olhos ela parece dizer que, na merda, as emoções são mais fortes. “Mas é para isso que servem os escritores”, acrescenta. “Eles escrevem e os leitores lêem. Eu crio os porcos, você faz as salsichas e lingüiças e os outros compram e comem. Criar porcos e escrever livros segue um padrão de produção semelhante, você não acha?”.
Sim, eu acho, Ana, fico nervoso, as mãos estão suadas. Pensando: como ela pode falar sobre essas coisas com tanta naturalidade? Ela mesma explica, citando Einstein: “a imaginação é mais importante que o conhecimento”. Mas não me contento, há algo a mais naqueles cabelos volumosos, naqueles lábios cheios que se mexem calmamente e com vigor, naqueles movimentos delicados, tudo tão calmo, lúcido, tudo tão tranqüilo quanto um matadouro de porcos, mas assim não é possível!
No fim de tudo ela me deixa pagar a conta, afinal, é uma dama verdadeira. Nos levantamos e eu pergunto se não teria problema fazer uma última pergunta bem piegas, plágio tirado de um livro de entrevistas da Clarice Lispector. Ela ri, inclina a cabeça, então eu digo: “qual é a coisa mais importante do mundo?” Sem pensar muito, Ana responde: “o meu universo”. Já meio grogue, eu emendo: “e o que faria você desistir desse universo?”. “A morte”, ela diz, me dá um abraço bom e vamos um para cada lado.



CITAÇÕES :
“Se você construir uma coisa de verdade, transmitir alguma idéia, você primeiramente vai procurar um caminho para chegar a essa idéia. E então você bota no papel o que você já construiu, que já está dentro. E isso é o seu dia-a-dia, as suas vivências, o que você pensa, é uma frase que você escutou ou viu em algum lugar, é um crime que você viu na esquina, é um afago que você fez no cachorro. Quando você escreve, estas emoções se libertam. A influência da sua infância, as surras que você tomou, isso é literatura. Coisas pessoais que você transforma em palavras e encontra uma maneira de narrar aquilo”.
“Comecei a ler e escrever alguma coisa com 18 anos. Imagina o que eu já tinha vivido até os 18 anos! É muito mais do que de lá até agora. Então as minhas principais influências são muito mais do que foi vivido, e não tanto do que foi lido”.
“O diálogo é mais democrático do que a descrição narrativa. Dizer que é de um jeito tem menos força que mostrar o jeito”.
“Eu sou sem noção para escrever”.
“Os críticos tentaram, mas não conseguiram me encaixar em nada”.
“Detesto essa literatura chá-das-cinco”.
“Solidão é um momento em que as coisas silenciam”.
“Acredito que a literatura é feita por degenerados sobre degenerados”.
“Ficar imaginando uma história pra contar. Pra entreter. Informar. Mas é pra isso que servem os escritores, eles escrevem. E os leitores, lêem. Eu crio os porcos, você faz as salsichas e lingüiças e os outros compram e comem. Criar porcos e escrever livros segue um padrão de produção semelhante, você não acha?”.
“Não insisto em trazer o texto para a minha realidade. O que faço é regurgitar minhas idéias, meu cotidiano e minhas impressões”.
“Desconsidero sexualidade quando o assunto é literatura, ao menos a que faço”.



TRECHO DO ROMANCE “A GUERRA DOS BASTARDOS”:
“Gotas de suor escorrem pelas costas. Sente queimar a pele, sufocar os poros. A cauda de serpente contornando o umbigo expele bolinhas de suor que borbulham da pele. O pescoço aquece, a garganta incandescente do dragão fritam seus pensamentos, suas garras fincadas nas costelas, as asas querendo transportá-la para uma outra dimensão.

Gina Trevisan faz muitas flexões. A musculatura da barriga divide-se em contornos sulcados profundamente. Enquanto os músculos trabalham, os pensamentos ventilam, o coração amortece.
De pé, agarra a barra de ferro atravessada no alto da janela da sala, de frente para o sótão. Sobe e desce e agora seus braços esforçados reagem ao deixarem em evidência veias salientes, dilatadas. Sua pele branca está vermelha. Todo seu corpo está vermelho. O dragão nas costas enfurecido disposto a dragar a areia, o lodo entulhado no fundo do lago de seu espírito, do oceano de seus pensamentos. Ela transpira as horas incompetentes, o coração dilacerado, o medo, as surras, os conselhos da mãe, a musgosidade dos dias e o inquebrantável silêncio que sonda sua alma, sem deixar brechas para tomar resoluções. Gina Trevisan transpira-se”.



PUBLICAÇÕES DA AUTORA:
Romances:
"
O Habitante Das Falhas Subterrâneas" (ed. 7 letras _ romance/2003).
Antologias:
25 Mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira” (Ed. Record - 2004), Sex´n´Bossa (Ed. Mondadori - Itália/2005).
Contos sobre Tela” (Ed. Pinakotheke - 2005)
*e mais uma antologias a ser lançada neste ano:
“Contos para ler fora do armário” (Ed. Record - 2007) - organizada por Santiago Nazarian e Marcelino Freire.
Internet:
2006 - "Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos" (
www.folhetimpulp.blogspot.com).
*primeiro folhetim pulp da internet brasileira.
2007 - "Barbudos Cretinos e suas histórias canalhas” (
www.barbudoscretinos.blogspot.com).

por Leonardo Marona

Um comentário:

Marcelo Novaes disse...

Beleza!

Gostam de Ana Paula Maia?!

Eu também gosto.

Visitem meu blog. Ela gosta.




Abraços,


Marcelo.