Walmir Ayala em grande estilo

Franklin Jorge
[Escritor e jornalista]


A Editora Leitura, de Belo Horizonte, está reeditando livros de Walmir Ayala, um dos poucos autores brasileiros a quem, pela multiplicidade do seu talento criador, podemos chamar de estilista e mestre. Como Machado de Assis, Murilo Mendes, Lúcio Cardoso, Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto, Cecília Meirelles, Cornélio Penna, Ascendino Leite e alguns poucos outros.
Falecido prematuramente, em 1991, deixou Walmir Ayala uma obra vastíssima em prosa e verso, capaz de proporcionar deleite a adultos e crianças, além de ter se notabilizado como um dos mais importantes críticos de arte do país e um incansável e generoso divulgador do talento alheio. Nunca, antes dele, tantos deveram tanto a um ser em tudo especial e único. Sou, com muita honra, um desses de quem Walmir, generosamente, se fez credor para todo o sempre.
A reedição de sua obra esgotada e dos inúmeros inéditos deixados pelo autor gaúcho, que se faz agora pela Editora Leitura e com a colaboração do crítico e herdeiro de Walmir, André Seffrin, representa um ato de justiça para com um criador literário que se destacou em vários gêneros, do romance à poesia, do teatro ao ensaio, do jornalismo à crônica, do diário intimo à literatura destinada às crianças e aos jovens, da critica literária à critica de arte, da qual foi, enquanto viveu, o mais importante de todos e o mais original de todos os tempos, como que a conformar que o melhor critico é o poeta.
Em publicações criteriosas e bem cuidadas, está Walmir outra vez ao alcance de todos, graças a uma iniciativa de editores que prezam, efetivamente, a qualidade e colaboram, através da difusão de bons autores, para que tenhamos uma biblioteca genuinamente brasileira e universal, da qual todos nós, como leitores, podemos nos orgulhar. Não me detenho nos demais autores escolhidos pelo tirocínio dos que fazem a Editora Leitura, mas tão-somente em Walmir Ayala, que a todos representa e resume, sem desmerece-los, segundo a pluralidade do seu gênio literário a toda prova.
Como romancista, tem Walmir o dom da intensidade sob o aparente minimalismo do enredo, forjado, geralmente, com reduzido elenco de personagens. Mas, que quanta complexidade na expressão dos conflitos que convulsionam cada uma dessas almas atadas entre si por um destino inescrutável como a própria divindade que o plasmou. Em tudo, porém, a grande arte literária de Walmir Ayala, como o sinal de uma criação que delata um mestre em seu ofício. O de nos comunicar a essência existencial e metafísica de seres, aparentemente vulgares, flagrados na obscuridade e no silêncio.
As Ostras Estão Morrendo acaba de sair, em primeira edição, ao mesmo tempo que À Beira do Corpo, considerado por muitos, além de um livro terrivelmente bem escrito [Assis Brasil], um autêntico e grande romance [Otávio de Faria], dos mais belos e lancinantes da literatura brasileira [Ledo Ivo]. É um curiosíssimo trailer, escrito de forma rápida e elíptica, recolhido do espólio de inéditos de mais de cem títulos por Walmir, ao falecer, aos cinqüenta e oito anos. Mas, ninguém se engane – sob o aparente minimalismo do relato, ainda que mal-dissimulado, o torvelinho de sordidez e paixão, também presentes em Á Beira do Corpo, romance há muito esgotado, cuja tessitura dá consistência a uma dicção personalíssima, como tudo o que traz a assinatura de Walmir Ayala, um autor que, por sua grandeza e singularidade, ombreia com um outro gênio das letras, igualmente polivalente em suas formas de expressão – o esteta Oscar Wilde.

Crônica de Leonardo Marona

a felicidade anda bêbada de ônibus


"Entrei no ônibus sorrindo e cambaleando, como qualquer sujeito ao lado de quem se pode dormir sossegado, e fui para o fundo, chacoalhando com os buracos do asfalto mal reformado. Havia no ônibus algumas caras mortas e três meninas no fundo.Assim que sentei, me virei para trás. Vi o reflexo de uma das meninas, a mais tímida e de cabelo crespo preso, muito nariz, pela janela da lotação. Um reflexo cansado. Ela entendeu o jogo, gostou da brincadeira secreta, olhou de volta pelo vidro da janela. Estava sentada ao lado de uma menina que usava uma luva preta com espetos de alumínio e tinha um tridente enfiado na cabeça, entre os cabelos.Esfreguei os olhos uma, duas vezes. As três meninas riram. O que estariam pensando? Duas sentadas juntas de um lado. A terceira sozinha do outro, muito séria, cabelo enrolado, a franja que lhe caía sobre os olhos me deixou momentaneamente sem tato: o corpo duro, a vida dura, muito mimo, filha única, muito álcool, pouca troca justa. O melhor tipo para uma pessoa séria desempenhar mal. Ela me chamou mais atenção do que as outras duas juntas: a do reflexo no vidro e a dos espetos na luva preta. Ela era minha alma flutuando por entre os dentes de um sorriso falso. Eu olhava para ela sozinho, do meu banco, cotovelos sobre os joelhos, e ela era um motivo para viver. Um motivo para rir. Era pouco e era tudo. Um motivo para.Percebi que ria de mim entre os dentes. Começou a me apontar. Pensei: “Então quer jogar? Pois muito bem, vamos jogar”. Olhei de volta e ri o riso mais canalha, aquele que se dá para as balconistas em alguns dias menos quentes, quando se acorda desmotivadamente feliz e até as remelas nos olhos são como que poéticas. Ela olhou de volta e fechou a boca. A franja deu meia volta e foi cair na ponta do nariz. Um sopro para cima e a franja alçou vôo, e com ela foi minha ilusão. Eu ri, eu ri, eu ri. Aquilo. Como era bom. Olhar para ela e rir. Como era simples. Como era mentira. Um riso tão raro, tão procurado por becos escuros e ruas sem saída e fundos de garrafas e vidas sem saída e mortes sem entrada e náuseas escorridas de noites mal dormidas nos pátios de árvores ressequidas da boa e velha vontade de ser esquecido pelo tempo e desintegrado no espaço. Era um riso com tantos pequenos detalhes imersos que senti a obrigação de olhar de volta, boca espremida no desejo de ir adiante, dar o passo à beira do cadafalso, pisar firme o chão movediço e levantar os braços, olhar para cima, para o Grande Palhaço, e dizer que dessa vez passa, que hoje tudo passa, que eu passo.Ela sorrindo de uma maneira tão pura e indefesa e revoltada com a tristeza que gritava tão mais alto do que as cordas e notas das boas rodas de chá e mesa. Mas rir de volta para ela era tão inadmissível como uma descoberta: de modo que se enfureceu. Levantou, o ônibus como uma centrífuga, e começou a gritar: "Pára essa merda! Pára essa merda! Quero descer! Puta merda!".As amigas intervieram me olhando com a raiva acumulada em anos de falta de compreensão. Eu só conseguia rir e rir, gargalhava, fazia tempo que não. Ela então veio até meu banco, meteu sua cara bem na frente da minha cara, soprou mais uma vez a franja mal cuidada para longe da ponta do nariz e disse: "Amigo, posso saber qual é a graça?". Eu disse: "Você é". As amigas já tinham se levantado. "Deixa ele, é um bêbado!", gritaram. Olhei para minha menina, querendo convencer a mim mesmo de que era minha, já que era sozinha e eu também só tinha minha solidão, passatempo da raiva compadecida, então disse a ela: "Viu, moça... Ouça as suas amigas... Sou apenas um bêbado".Levantei porque tinha chegado minha hora, como chega a hora toda hora para todo mundo que tem que ir embora agora e para sempre. Fui andando, cambaleando, escorregando pelo tédio da viscosidade noturna. Parei na frente da felicidade. Ela estava tão perto, tão acomodada, que me deu vontade de ser feliz junto dela, ou renegá-la como a um deus justo. Ela tinha cheiro e gosto e forma. Quem foi mesmo que disse que a beleza é a única coisa divina e visível ao mesmo tempo? Um alemão provavelmente. Os alemães são os mais incríveis mentirosos.Mas pela primeira vez era melhor ver do que pensar na felicidade. Ela me estendeu a mão num sorriso que borrava a noite de branco, mas era um sorriso morto. Dei a mão a ela e disse: "Muito prazer, eu te amo". As amigas da felicidade, o espelho e o espeto, acharam graça e riram da minha cara. Acho ótimo que eu ainda tenha alguma graça para alguém. A felicidade abriu a boca e ficou assim, com ela aberta, sem me engolir. Depois riu do seu próprio ego inflado e resolveu brincar. Disse por fim: "Muito prazer, meu nome é Graça". "Eu sei... Eu sei...", disse a ela e desci do ônibus.
Olhei pela janela. Ela estava ali, com a cabeça de fora. Tudo rápido demais porque mágico. A eternidade não dura mais que cinco quadros. Nem a beleza. O mundo ainda tinha vida na sua melhor metade. "Fique com deus", li nos lábios da Graça, da Felicidade. "Você...", eu disse de volta apontando, meu rosto como a parte preponderante que some na escuridão da vontade. Até mais ver, Felicidade."

Urariano Mota

"Se perguntarem a José Padilha, o diretor de Tropa de Elite, se o seu filme é fascista, a depender da ocasião e circunstância, ele pode sorrir. E dirá, como já disse: “Dizer que ‘Tropa de Elite’ é fascista ou de direita é provinciano, uma bobagem. É uma tentativa moralista, simplificadora, de tentar lidar com uma realidade com conceitos muito pequenos. Quer dizer que filmar bem não pode, só pode filmar mal? Não pode iluminar bem uma cena? Não pode ter um tom bom, ter efeito especial? Só os cinemas americano e europeu podem fazer isso? Essa relação que as pessoas fazem entre a qualidade, o estilo do filme e uma mensagem moralista qualquer por trás dele, é uma besteira... Não se pode filmar bem no Brasil uma cena violenta, senão se está glorificando a violência. Tem que ser meio bom?”.

Ora. Com expressa atenção a nossa insignificância, reconhecemos que “Tropa de elite” é um fenômeno hoje em toda a sociedade brasileira. Fenômeno de vendas, a partir já da distribuição em cópias pirata, fenômeno cultural, se por cultura (o cacófato vem a calhar, porcul, porco), se por cultura entendemos manifestações de comportamento. Fenômeno de mídia, fenômeno fenomenal, um fenômeno enfim. O diretor do filme está no Olimpo da hora."

Marcelino Freire

AQUELE RELÓGIO ROLEX
Eu sei que o assunto está antigo e batido, mas foi um leitor-amigo quem me alertou. Deste meu texto, intitulado Esquece, publicado no livro Contos Negreiros.
ESQUECE
Violência é o carrão parar em cima do pé da gente e fechar a janela de vidro fumê e a gente nem ter a chance de ver a cara do palhaço de gravata para não perder a hora ele olha o tempo perdido no rolex dourado.Violência é a gente naquele sol e o cara dentro do ar-condicionado uma duas três horas quatro esperando uma melhor oportunidade de a gente enfiar o revólver na cara do cara plac.Violência é ele ficar assustado porque a gente é negro ou porque a gente chega assim nervoso a ponto de bala cuspindo gritando que ele passe a carteira e passe o relógio enquanto as bocas buzinam desesperadas.Violência são essas buzinadas e essa fumaça e o trânsito parado e o outro carro que não entende que se dependesse da gente o roubo não demoraria essa eternidade atrapalhando o movimento da cidade.Violência é você pensar que tudo deu certo e nada deu certo porque quando você vê tem um policial ali perto e outro policial ali perto querendo salvar o patrimônio do bacana apontando para a nossa cabeça um 38 e outro 38 à paisana.Violência é acabarem com a nossa esperança de chegar lá no barraco e beijar as crianças e ligar a televisão e ver aquela mesma discussão ladrão que rouba ladrão a aprovação do mínimo ficou para a próxima semana.Violência é a gente ficar com a mão levantada cabeça baixa em frente à multidão e depois entrar no camburão roxo de humilhação e pancada e chegar na delegacia e o cara puxar a nossa ficha corrida e dizer que vai acabar outra vez com a nossa vida.Violência é a gente receber tapa na cara e na bunda quando socam a gente naquela cela imunda cheia de gente e mais gente e mais gente e mais gente pensando como seria bom ter um carrão do ano e aquele relógio rolex mas isso fica para depois uma outra hora. Esquece.

Mais Marcelino Freire aqui!

Orelha de Van Gogh em Quadrinhos




O conto A Orelha de Van Gogh, de Moacyr Scliar, foi adaptado para os quadrinhos pelo cartunista Leandro Dóro. A história, com sete páginas, integra a coletânea de quadrinhos Tempero Verde (44 pág, p&b, 15cm x20,5cm, papel reciclado, R$5). A revista apresenta mais sete histórias em quadrinhos roteirizadas e desenhadas pelo artista gráfico. O lançamento foi durante a 12ª Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo.


A Orelha de Van Gogn é um conto que me fascina desde a adolescência. O pai sonhador e o filho com consciência das loucuras do progenitor sempre me tocaram — diz o Dóro, que é autor da ficção Revolta dos Motoqueiros (2006). Mais Leandro Dóro Aqui aqui e aqui







3 Contos


A DOR DE SER BRASILEIRO
Era uma vez um homem e, portanto, um vitorioso. Na corrida contra bilhões de espermatozóides, ele chegara na frente. Era vitorioso também porque durante a gestação sua mãe não sofrera nenhuma queda e tampouco adoecera.
Ele nascera bonito e normal. Um homenzinho que tinha todo o mundo para desfrutar. Beleza pura, mas nem tanta. Logo descobriu que nascera preto, pobre e brasileiro.
O leitor que acha que não temos racismo no Brasil reclamará, mas reclamará errado. Nosso racismo é tão grande que não é privilégio de pretos ou mulatos. Ele atinge os pobres em geral, desempregados ou não. Claro que os pretos são suas maiores vítimas. Quanto mais negros, mais padecem, e a eles sobrarão sempre os últimos lugares, os empregos mais humildes e mais mal pagos.
Para os pretos que não quiserem viver infelizes só há uma saída: precisam enriquecer. Para enriquecerem terão de fazer dez vezes mais esforço do que os brancos. Nessas tentativas, pois assim quer um sistema louco e adorador de ídolos, perde-se o caráter e ganha-se em subserviência; perde-se a naturalidade e ganha-se um sorriso cortado à faca no rosto.
Junto com a naturalidade e a posição ereta ganha-se também uma espinha dorsal de borracha. Mas João, embora soubesse disso, não deixaria que acontecesse com ele. Os pretos, se enriquecerem muito, ficarão brancos como Pelé. O preço que terão de pagar por isso: só terão amigos brancos e, na maioria, mal-intencionados. Como afastaram-se dos amigos, estes também se afastaram deles. Tornaram-se párias com uma identidade no bolso e outra, a verdadeira, no coração.
A mulher preta e pobre, caso seja bonita, poderá tentar sua independência como cantora, atriz, modelo, mas há muita competição nesse universo artificial. Por outro lado, o homem preto que vence na vida não sente que é preto. Nos filmes policiais americanos, os racistas até se divertem com isso. Colocam um preto sempre como chefe dos detetives. Irritado, ele vive dando os maiores esporros nos seus detetives brancos. Mas seu papel é pequeno e, na vida real, a coisa é outra. Alguém aí da platéia poderá argumentar que Michael Jackson ficou branco e ainda dá a sorte de ser adorado por centenas de milhões de pobres negros e brancos.
Não creio que meu personagem, João Souza da Silva, almejasse ser amado como Michael Jackson ou como seu ídolo, Lula. João, por sinal gaúcho e nascido em 1958, queria trabalhar e ser feliz. Seu pai era leiteiro e a mãe era de prendas domésticas. Tinha irmãos e irmãs mais moços e mais velhos. Viviam com sacrifício, mas não faltava comida, escola, bebida e nem teto.
À medida que cresciam, as crianças ajudavam no orçamento. João Souza da Silva engraxava sapatos e vendia jornais enquanto fazia o primário. Gostava muito de ler e queria fazer o vestibular. A realidade, porém, mostrou-lhe o seu lugar e ele fez o curso de contabilidade. Apaixonou-se por uma jovem colega dois anos mais moça. Como viviam numa época em que o sexo entre adolescentes não só era moda como era incentivado pelos meios de comunicação, a carne falou mais alto.
Bom nome para uma novela das oito: A carne falou mais alto, com Vera Fischer. Falou tão alto que sua namorada engravidou. Como se amavam, ele fez o que qualquer rapaz direito faria: casou-se com ela. Foram morar com a família dela, que queria um casamento melhor para a filha. Durante anos João trabalhou nas mais diversas áreas até que, finalmente, passou num concurso para um banco particular. Com o salário pôde alugar um apartamento no subúrbio.
João continuava noite afora trabalhando como chofer de táxi. Trabalhava das seis da tarde às três da manhã. Poderia dormir nos fins de semana, mas, no sábado, tinha reunião no PT local, onde era segundo-secretário. E domingo era o dia em que não precisava pagar a diária ao vizinho, dono do carro. As duas filhas estavam na faculdade. Uma fazia jornalismo e a outra, geografia. Como todo pobre que se preza, não queria que as filhas passassem o que ele passara e por isso não as deixava trabalhar.
Lula se elegeu, mas as coisas não melhoraram. Seu salário continuou congelado e os vizinhos não queriam mais saber do futuro, pois este já se apresentava em toda a sua cruel realidade naquele subúrbio afastado de Porto Alegre. Seis meses antes fora demitido na agência em que trabalhava. Mandaram-no procurar um advogado. Envergonhado, nada contou à família. Logo gastou as poucas economias e teve de pedir dinheiro emprestado. Para esquecer-se do que devia e das mentiras passou a beber. Uma noite, verificou que se tornara impotente e, no dia seguinte, deu um tapa na filha, que lhe disse que ele cheirava a bebida. Bebeu no Centro até o fim do expediente, mas, em vez de pegar o ônibus para casa, pegou o ônibus para a rodoviária.
No Rio passou três dias sem comer nada, até ser levado pela polícia para um abrigo de indigentes, de onde fugiu. Imagino como deve ter sido duro para ele pedir esmolas. Ele sabia que não era um mendigo, era um bancário, um trabalhador. Poderia ter sido até mesmo um doutor, se não precisasse ajudar a família. Agora era parte da legião, mas tomava banho todos os dias e mantinha seu paletó e gravata, bem como seus documentos em dia.
Não queria ser confundido com louco algum. Ele estava aleijado por dentro, não sabia que já desistira e vagamente lembrava da família, mas ainda olhava nos olhos das pessoas como se não fosse um mendigo. Como se dissesse: "Apesar do que vocês possam pensar, eu sou um homem e não um cachorro". Só quem já necessitou sabe quão terrível é a dor daquele que necessita; a dor moral que se torna física e faz enlouquecer.
João Souza da Silva, o trabalhador negro e bancário, acabou na Barra da Tijuca no dia da inauguração do Fashion Rio. Ele do lado de fora e do lado de dentro algumas das mulheres mais belas e alguns dos homens mais ricos do mundo. Na Barra da Tijuca - um inferno de samambaias, vidraças fumé, drogas e ar-condicionado - não tem esquina e os sinais de trânsito surgem eventualmente a cada dois mil metros. Isso ocorre porque a Barra não foi feita para pedestres. Foi feita para caçadores ricos. E um desses caçadores do volante matou João Souza da Silva, homem de bem, negro, brasileiro, desempregado, como milhões de brasileiros.
João foi morto por um canalha que nem parou para ver em que batera. Morto ficou durante cinco horas sob o sol brabo. Morreu numa terça-feira de tarde, enquanto ladrões riquíssimos insultavam-se mutuamente no Congresso. Enquanto ladrões riquíssimos olhavam excitados os corpos de modelos adolescentes no Fashion Rio. Enquanto Olavo Setúbal, dono do Banco Itaú, dizia a um repórter: "Um dos maiores prazeres do mundo é poder viajar pelo mundo sem obrigação de trabalho.
As jovens modelos que já haviam desfilado resolveram tomar refrigerantes do lado de fora do shopping. A 50 metros de distância viram uma pequena multidão e dirigiram-se até ela. A mais bonita das modelos aproximou-se do corpo, jogado na calçada.
Era o nosso João, ainda belo, ainda bem vestido. Olhos fechados, expressão aliviada no rosto. Só era possível saber que estava morto por causa do sangue que saía do seu ouvido. Ela, a modelo, ex-miss, teve uma reação de leitora de contos de fada. Enquanto duas lágrimas desciam pelo rosto de menina a quem haviam obrigado ser mulher antes do tempo, desde que via os programas da Xuxa, exclamou para todos e para ninguém:
- Se ele fosse um príncipe já o teriam levado.
O mais irônico nisso tudo é que ele era um príncipe.

Fausto Wolff, gaúcho, jornalista e escritor, publicou “A Milésima Segunda Noite” (romance, Ed. Bertrand, 2005). http://www.faustowolff.org/

------------------------------------------------------------------------------------


BANDEIRAS
Se eu fosse Antonio, eu teria me pedido pra preparar aquela ceia de Natal, porque sendo Antonio eu ia querer aglomerar as famílias, enfeitar árvore, comer panetone e tocar jingle bells.
Se eu fosse Antonio eu teria ligado pessoalmente pra mãe, irmão, sogra, cunhados, lagartixas e papagaios. Teria organizado aquele malfadado amigo secreto, listando os presentes e preestabelecendo os valores, porque Antonio é pura organização.
Antonio usa gravata e passa gel no cabelo.
Se eu fosse Antonio eu teria recebido todos com um sorriso aberto e um abraço sincero (Antonio fica todo emocionado com esse lance de família).
Se eu fosse Antonio eu ia achar natural que, naquele clima de confraternização, alguns se excedessem na bebida. “Imagina, é dia de festa”. “Uma vez na vida todo mundo tem direito”. Afinal, ser Antonio é isso aí. Tolerância pura.
Se eu fosse Antonio, quando meu irmão, ainda vestido de papai-noel, começasse a gritar com a mulher chamando-a de piranha e coisa e tal, acusando-a de dar mole pro idiota do Arnaldo, eu teria tentado pôr panos quentes. Daria um sorriso amarelo. “Afinal, é coisa normal”. “Casal é assim mesmo”. “Nada que uma conversa a sós não resolva”. E por aí vai. Ou ia, porque Antonio é assim. Antonio não dá bandeira, não assume vexame.
Se eu fosse Antonio, eu não teria como adivinhar que o irmão, sentindo-se contrariado e já de saco cheio, se transformasse num papai-noel ensandecido e, babando na barba torta, gritasse, bem no meio da sala, que de corno conformado bastava um na família.
Se eu fosse Antonio, eu não suportaria todos os olhares acesos em minha cara, mas ainda assim eu teria disfarçado, alegado insanidade temporária, sei lá, Antonio é inteligente pra cacete, tem desculpa pra tudo.
Mas até Antonio um dia desata as estribeiras.
Agora, eu sendo eu não podia prever é que Antonio não suportasse aquela afirmação e pegasse o irmão pela gola e o enxotasse pra fora de casa, aproveitando pra falar bem na cara de todos que eles eram uma cambada de parasitas e coisa e tal.
Eu sendo eu, ia ficar petrificada quando, uma vez a sós comigo, Antonio me aplicasse uma surra daquelas.
Eu sendo eu, jamais poderia esperar que seria ali mesmo, em cima da mesa, que ele me daria o melhor presente de Natal de minha vida.

Adrienne Myrtes, pernambucana, editora do site www.cronopius.com.br, publicou “A mulher e o cavalo e outros contos” (Ed. Alaúde, 2006). adriennemyrtes@hotmail.com
------------------------------------------------------------------------------------

SEU OSÓRIO, CONSELHEIRO
Quinta-feira, oito horas da manhã. Seu Osório, naquela disciplina que só os velha-guarda têm, deu o tapa de todos os dias no balcão, e o Zezinho, naquela presteza que só os garçons de Nova Russas têm, pôs, em segundos, o sagrado café pingado e a canoa encharcada de manteiga diante do velho que, agradecendo como de costume, arrotou altíssimo enquanto mexia o café com leite com metade do pão francês, fazendo o papel de colherzinha. Ficou olhando pra dentro daquele copo americano, o líquido gorduroso, tascou a primeira mordida no pão encharcado e diante do inevitável e grosso pingo
que sujou a camisa, soltou:
- Pôta! - e arrotou de novo em seguida.
- Que foi, seu Osório?
O velho virou-se e viu o menino sentado à mesa.
Virou-se em direção ao balcão, de volta, e perguntou ao Zezinho, de boca cheia:
- Quem é?
- Filho do doutor Tiago, novo vizinho da Graça, sua santa filha... - e esboçou um sorriso de canto de boca.
- Tá rindo do quê, fidaputa?
Nada não... Nada não...
Tornou a pousar os olhos sobre o menino.
- Como é teu nome?
- Sérgio.
- E como é que tu sabe meu nome, putão?
- Quem não conhece o senhor aqui?
O velho Osório gostou do que lhe soou como deferência. Fez um sinal pro menino, como que anunciando que ia se sentar à mesa.
- Senta aí, seu Osório...
O velho sentou-se, pousando o copo e o pratinho com a outra metade da canoa.
- Quantos anos você tem, moleque?
- Dezesseis.
- Tá indo pro colégio, garoto? - disse de boca cheia apontando pros livros diante do menino.
- Tô não, seu Osório... Tô na fossa...
Seu Osório soltou uma gargalhada acompanhada de um tabefe na pilha de livros do garoto. E disse, virando-se pro Zezinho:
- Veja isso, Zezinho! Dezesseis anos e na fossa! Traz uma cerveja pro menino!
- Quer, Serginho? - perguntou o Zezinho.
- Eu disse traz uma cerveja, pôta!
O menino parecia encantado diante do mais comentado personagem daquela bucólica rua do bairro de Vila Isabel.
Zezinho pousou a garrafa diante dos dois, recolheu o prato e o copo com o café da manhã do velho Osório, e, quando foi servir a cerveja, o comandante do pedaço esbravejou:
- Eu sirvo, fidaputa! Obrigado!
Serviu o menino primeiro, depois a si mesmo. Serginho esperava o primeiro gole do seu Osório, para quem olhava - era nítido - como a um ídolo, quando o velho, numa única talagada, secou o copo. Imitou-o. Osório serviu-os novamente, passou a mão na cabeça do garoto - era dado a esses arroubos de carinho com os mais novos - e disse:
- Desembucha! Na fossa por quê?
- Ah...
- Conta. Confia em mim. Desembucha!
- Ontem fui apresentado a uma menina que mora ali na Dona Maria... Na vila, sabe?
Prima mais velha de um colega meu de colégio... Uns vinte e cinco anos, eu acho... Que linda, seu Osório! Que linda! E mora no Méier... sozinha! Parece que estuda na Gama Filho...
- Sei... Zezinho... Mais uma!
Linda, seu Osório... Linda... Pensei nela a noite inteira...
O velho, não escondendo a excitação, vivendo as emoções do menino que há muito deixara de ser, com o copo emborcado, disse:
- E aí? E aí?
- E aí que eu tenho namorada, seu Osório. Gosto dela. Acho que sou apaixonado. E sou fiel. Daí meu drama...
O velho então transtornou-se. Soltou um arroto de fazer o garoto virar o rosto. Levantou-se. Pediu uma outra garrafa ao Zezinho. Deixou cair um ou dois livros no chão. Tomou a garrafa das mãos do Zezinho, puxou a cadeira, repetindo um gesto seu já clássico, e o menino de olhos arregaladíssimos atento a cada movimento do seu Osório.
Disse o velho:
- Zezinho... Segura a cadeira aí... Vou subir, vou subir!
Vinha chegando o Bule, que gritou:
- Mas já? - e gargalhou.
Seu Osório já subindo na cadeira:
- E tem hora pra isso, ô, balofo?! Vou discursar! Vou discursar!
- O que é que houve, seu Osório? - disse o Bule cumprimentando o menino com a cabeça.
- É o seguinte, meus amigos... Silêncio, porra! Silêncio! - e esse pedido de silêncio era meramente feito por hábito, já que Serginho, Zezinho e Bule estavam rigorosamente mudos diante daquela cena inédita àquela altura da manhã.
Ajeitou os óculos e cravou o indicador em direção ao Serginho, de olhos brilhantes e vidrados.
- Deveria ser vedado a um menino de sua idade apaixonar-se! Deveria ser proibido o direito à fidelidade!!!!! Mais grave! Mais grave! Deveria ser obrigação o descompromisso! Deveria ser imperativo o viver à disposição das moças em flor, porra!
Uma lágrima corria dos olhos do velho Osório.
- Tá chorando, meu velho? - provocou Bule, cutucando Zezinho.
- Não, ô, babaca! Tô mijando pelo olho!
Serginho riu.
Prosseguiu:
- Isso, menino! Sorria! Sorria e coma as moças que te chegam! Sorria e desfaça esse namorico! Tenha vinte e cinco, trinta anos, e aí sim tu amarra teu burro nas coxas de uma mulher! Agora, não! Agora, não! Ou te arrependerás amargamente! Ouviu, putão? Ouviu?
Serginho fez que sim.
- Dá a mão aqui, porra! Ajuda! - disse em direção ao Zezinho.
Desceu, abraçou-se ao menino - que também chorava - e pediu mais uma garrafa.
- Ihhhhh... O menino também tá chorando, ó só! - era o Bule de novo.
- Tô mijando pelo olho também, seu Bule!
Seu Osório, tal como fizera com o Vidal há alguns anos, adotara o garoto. Selaram, ali, uma relação de amizade de infância.

Eduardo Goldenberg, carioca, autor de “Meu Lar é o Botequim! Histórias, Palpites e Feitiços sem Fim” (crônicas, Ed. Casa Jorge, 2006)

Crônica de Marcelo Mirisola

"Estudei num colégio adventista no final dos setenta, o Luzwell, éramos semi-internados. Ou quase castrados, tanto faz. Um dia fui convidado a me retirar do colégio por Rubão, o diretor-pastor.
Rubão também era um cara soturno e sádico que distribuía “croques” na cabeça dos alunos. Foi ele quem me mostrou um quadro cheio de alfinetes coloridos. Os alfinetes, segundo a didática do Rubão, serviriam para “graduar o comportamento dos internos”. Eu tinha quatro alfinetes negros espetados no meu nome. Até hoje não entendo porque me espetaram daquele jeito. Quero dizer que fui um garoto discreto, amedrontado e, na medida da verossimilhança, safo.
Apanhei um bocado naquele maldito lugar. E planejei algumas vinganças, porém nunca sujei as mãos de sangue: desde aquela época meu prazer consistia em articular minha desgraça junto à desgraça dos outros; cavar buracos cujas vertigens eu fazia questão de deliberar de acordo com o troco a ser implementado. Confesso que é difícil não me gabar: mas sempre fiz as escolhas adequadas. Tanto fazia se errava ou acertava no alvo." continua

Retrato da Literatura enquanto vida

A pluralidade de gêneros numa obra implica, via de regra, em sérios problemas. O maior deles, falar de tantos quase nada. Felizmente isso não acontece com O Texto, ou: A Vida, mais recente produção de Moacyr Scliar.
Pela mesma trilha de Vita Nuova de Dante Alighieri, Scliar lança mão das possibilidades que a literatura oferece e coloca vida na literatura e literatura na vida. Na sua e na do leitor.
É de se esperar que um livro com tal característica não seja um exemplo de aprofundamento de abordagem em todos os temas, a não ser que atingisse a marca de umas três mil páginas. O livro de Scliar, no entanto, conta imprescindíveis 272 páginas. O que pode parecer pouco vale muito mais que as famigeradas oficinas de criação literária que pululam país afora. Inclua no rol das oficinas os patéticos e mal intencionados cursos superiores para formação de escritores.
O detalhe que poderia gerar uma confusão confere a O Texto,ou:A Vida sua maior qualidade, seu maior atrativo. O fato de o autor entremear sua produção, crônica, contos, romances, ensaios, etc..., com dados biográficos permitem ao leitor se colocar na cadeira reservada aos alunos que escutam o professor. Ler esse livro é como estar diante do mestre que supera os limites da teoria. Mas engana-se quem acreditar que as lições se resumem ao universo literário. O autor trabalha com um detalhe insignificante à maioria das biografias, a verdade, e é dessa verdade que o leitor perceberá a humildade, a elegância, o amor à família, à medicina, à literatura, à vida.
Do estudante de medicina que até então sonhava com a ascenção social ao primeiro contato com a dor, com a morte em sua inaugural aula de anatomia ao famoso episódio do suposto plágio da novela Max e os felinos pelo canadense Yann Martel, sem esquecer o aspecto social, inclua-se aí a medicina praticada por Scliar. É bastante comum a cobrança de uma postura política por parte dos intelectuais, confesso que não engrosso tais fileiras da exigência, mas o criador politizado já se apresenta em seu primeiro livro, O Carnaval dos animais, de 1968, Mês de cães danados e O Exército de um homem só são apenas mais dois exemplos entre tantos.
Quando mencionei suposto plágio ao me referir à novela de Yann Martel que tem o título de The Life of Pi foi porque Scliar, embora aconselhado a processar o canadense satisfez-se com um agradecimento ao seu trabalho no prefácio da edição seguinte. Um exemplo da opção do autor pela literatura. Convém lembrar que vivemos a moda do processo onde não se pode desprezar oportunidade para levantar um troco.
Então voltemos ao título do livro onde texto e vida se tornam sinônimos, ou melhor, adentremos à sala de aula.
Oportunidade para ouvirmos o autor falar sobre o nascimento de alguns de seus textos, ora crônicas, ora contos ou romances. Importante enfatizar que a maioria surgiu da observação do cotidiano, não há varinha de condão, sobra dedicação e inquietação.
Dos conflitos religiosos da infância Scliar extraiu a novela Os deuses de Raquel (1975), atenção: ao final deste texto voltaremos a essa novela. Ela explica o etc...lá de cima. Mitologia grega, tradição gaúcha, humor judaico e o realismo mágico é a combinação de ingredientes que fez O centauro no jardim (1980), imperdoável a não leitura dessa obra.
Estou esperando dos alunos das oficinas literárias e faculdades de formação de escritores uma fórmula que os tenha ensinado criatividade a esse nível. Está na hora de tratarmos a literatura com o devido respeito. O Texto, ou: A Vida é também uma homenagem à literatura, vale a pena ler o livro apenas para você ficar sabendo quais escritores influenciaram Scliar, vale a pena a leitura para você ficar sabendo como se faz literatura, vale para os estudantes de letras que em seus cursos debatem o debatido, concluem o concluído e os transformam em meros reprodutores do conhecimento descartável. Não sei se vocês sabem, mas a moda ainda é descobrir se Capitu traiu ou não o Bentinho.
Resumo da ópera: se a Beatriz não foi suficiente para aplacar a sede de amor e vida de Dante, Scliar fez da literatura, da família, da medicina, fazendo jus ao juramento de Hipócrates, da vida em última instância suas Beatrizes.
Quanto ao etc. ele se refere à novela Os deuses de Raquel onde Scliar desmente a orelha do livro. Ele também é poeta!

Luiz Horácio
Escritor e jornalista, autor do romance Perciliana e o pássaro com alma de cão (ed. Conex, SP, 2006).

Aldir Blanc no Blog de Mariana Blanc

TROFÉU COCÔ-MOLE
"O Troféu Cocô Mole da semana vai ser colado na testa de Celso Arroth, ex-tétrico do Complexo de Januário (não tem santo lá), autor da frase:
– O Vasco é um clube único. Muito treinador já teria sido mandado embora. Aqui me sinto tranqüilo.
Pela frase acima, vê-se que Arroth, além de técnico medíocre, é um homem desinformado."
Siga lendo aqui

Entrevista com Felipe Azevedo, compositor e violonista





Felipe, quero começar te pedindo pra falar sobre a concepção do Percussìve e sobre a idéia da figura do louva-a-deus, que aparece no encarte do cd.
A idéia conceitual do cd, tive quando fiz turnê na Europa. Lá tive a percepção do Brasil e me enxerguei como brasileiro de fora pra dentro. Foi uma coisa bastante impactante. Foi muito contrastante ver as diferenças de cultura e costumes de um lugar para o outro. Antes da turnê tinha uma idéia do que ia fazer, das coisas que ia falar no disco, que era falar sobre a brasilidade e tentar expor uma visão minha de um Brasil abrangente. Depois dessa experiência forte, uma série de questionamentos e reflexões me ocorreram. Vieram-me vários caminhos, várias respostas, em termos de conceito, uma forma de trabalhar o disco. A partir daí, várias músicas começam a surgir, entre elas “Balanço Tupiniquim”,“Canibalismoderno”,“Norato Cyber Cobra”. Também percebi a questão da antropofagia cultural, que é uma coisa bem forte do Brasil. Então pensei em retomar o conceito da antropofagia na minha música. E precisava de um símbolo, um ícone que representasse essa minha idéia. E decidi por usar a figura do louva-a-deus. Um dia, lendo um texto do Guimarães Rosa, (tem um trecho dele no encarte do cd) encontrei, pra falar da antropofagia e ao mesmo tempo da brasilidade na música, a idéia que esse inseto representa. O louva-deus tem vários nomes e significados em cada cultura. Para os muçulmanos, por exemplo, é um símbolo de fortuna, de sorte.



Num dos textos do encarte do cd tu fazes a seguinte pergunta: “o que ainda resiste do antropofagismo do Oswald de Andrade?” Comenta isso pra gente.
Acho que essa é uma pergunta que o artista brasileiro deve se fazer, deve pensar sobre isso. É um questionamento para o qual eu não tenho resposta, é uma indagação minha. Outra pergunta que faço é: até que ponto a antropofagia pela antropofagia vale a pena, a devoração pela devoração? Se for por aí, a gente acaba fazendo uma pasteurização de idéias. E o artista deve se perguntar sobre isso, e não simplesmente dizer: “vamos ser antropofágicos, vamos devorar, e isso é a nossa estética”. Acho que não é por aí. Às vezes, sinto falta de uma essência. Por exemplo, escuto Lia de Itamaracá e me emociono muito. E a gente sabe que ali tem toda uma tradição de cultura oral construída de uma forma muito verdadeira. Então, às vezes, com a mistura, esse tipo de essência acaba se perdendo. No meu disco, por exemplo, tem uma música, “Chorandinho”, que é um cateretê, em que reaproprio uns versos do Cancioneiro Guasca, do João Simões Lopes Neto, e os reapresento com o cateretê, que é um ritmo que surge lá com os jesuítas. E o que é legal na música é que falo duma coisa pura, singela, do popular, com uma abordagem contrapontística, sob o meu enfoque, ou seja, como penso o contraponto no violão e na música brasileira. E acho que dessa maneira as coisas me parecem mais sinceras. Não quero com isso estabelecer parâmetros, de forma alguma, mas é o que penso.



Tu fizeste uma leitura do Cobra Norato. Que elementos tu retiraste da lenda pra conceber a música “Norato Cyber Cobra”?
São duas coisas: primeiro tinha lido o livro “Antropologia do Ciborgue”, do Donna Arley, e em seguida o poema Cobra Norato. Pensei: daria pra recontar essa lenda numa visão pós-moderna, uma visão futurista. E comecei a pensar na história, e aí a idéia do cobra devorador. Além do que tem aquela expressão “o cara é cobra no assunto, esse cara sabe esse assunto, esse cara domina esse assunto”. Então, Norato como um cobra, um intelectual que é absorvido pela busca dele, pelo conhecimento dele. Na letra da música o personagem levava uma vida pacata. Uma figura típica que se encontraria em qualquer lugar do mundo ao mesmo tempo em que se enquadra dentro de um perfil brasileiro. Esse cara, no momento em que ocorre a sua transformação em cobra, à medida que vai devorando as coisas, vai se transformando em um ciborgue, em máquina. Aí, se dá uma coisa que é bem característica da nossa época, que é a questão da devoração pela devoração. Vai se devorando, consumindo e destruindo muitas vezes. E nesse processo, Norato está num encantamento em que luta com a Cobra, devora a Cobra e se transforma em Cobra. E na medida que ele vai devorando ele vai ficando cada vez mais máquina, só que a essência dele é humana. Mas ele só se dará conta disso quando se apaixona, se reencontra, redescobre o amor. A diferença é que, no texto do Raul Bopp, Luzia era a rainha e a filha da Luzia era quem o Cobra Norato ia tentar salvar da Cobra Grande...



... na Terra do Sem fim.
...na Terra do Sem Fim. Nessa minha adaptação a Luzia seria a personagem pela qual ele se apaixona, que ele vê no outdoor. Aí ele vai se apaixonar e sentir aquilo que há muito tempo não sentia, sentimentos humanos. Ele se descobre quando chega perto dela buscando a sedução, sibilando como uma cobra, mas completamente apaixonado, erotizado, sensual. Ele quebra o seu próprio encanto porque se apaixona e vivencia o amor. E ela, que parecia ser humana, para surpresa dele é um ciborgue e ele não. A coisa se dá aí, um contraste com o final da lenda. A discussão que tento trazer aí é enxergar essa figura como uma máquina. E essa história do ser humano com cada vez mais peças de máquina no corpo e menos elementos humanos dentro de si. Quase como um congelamento de sentimentos e valores. Acho que as pessoas têm sentido falta disso.



Na música “Balanço Tupiniquim”, que é uma mistura de embolada e milonga, é intencional o duplo sentido?
É sim, no sentido de balançar e de fazer um balanço. Com relação aos ritmos, ocorre o seguinte: tem a mistura da embolada com a milonga. A idéia era lançar um olhar sobre o país, usando os mais variados ritmos. Como sou do RS, tinha que citar algo daqui, não era obrigatório, mas era a deixa. Acho que a milonga é um dos gêneros mais representativos daqui. Então pensei em misturar as duas coisas, tentando casar forma e discurso nessa música. Essa música é uma reflexão sobre as questões referentes à brasilidade e ao que é ser brasileiro, uma pergunta e um balanço.



E tu tiveste algum receio ou dúvida em fazer um disco conceitual nos dias de hoje? Ou era o tipo de trabalho que fatalmente tu virias a realizar, não tinha como fugir?
Acho que não tinha como fugir disso. Quis colocar a minha visão das coisas. Sem, é claro, me colocar como dono da verdade. E nem coloco o que estou dizendo como ponto final da questão. O disco é conceitual porque tem muita reflexão, tem textos, trânsito por autores e referências, tudo sem preocupação de encerrar o assunto. É a minha versão. No encarte, antes de cada música tem um texto, para que isso funcione como um roteiro e como orientação e referências sobre cada uma das músicas. Isso dá uma idéia de viagem, de passeio sobre determinado tema, que começa e encerra com o canto de um índio caingangue.



Felipe, fala um pouco sobre as etapas do teu processo de trabalho desde o primeiro disco até chegar ao Percussìve.
O Cimbalê, lançado em 1998, tinha um caráter cosmopolita, abrangente no sentido de texturas e timbres sonoros e muito diversificado com relação a timbres. O Identidades também tem o caráter cosmopolita, porque tinha o encontro de um brasileiro com um suíço (Olivier Forel). Mas nesse o enxugamento é radical, porque a variedade de timbres que apareciam no Cimbalê agora se sintetiza no violão e no acordeão, e com duas estéticas autorais diferentes sem que conflituem entre si, mas dialoguem. No Percussìve, adoto um posicionamento bem radical sobre vários aspectos, onde descarto muita coisa em detrimento de outras – descartei bateria, baixo, guitarra e foquei no violão. A coluna cervical desse disco é o violão. Porque o violão tem a característica de ser percussivo, e isso é uma das coisas principais do disco, mas também exerce a função de acompanhamento, é contrapontístico e também orquestral. Ou seja, é um violão múltiplo. E isso é a principal característica com o que me identifico e que tem muito da herança do violão popular brasileiro. Ele sai do padrão típico de acompanhamento e soa como um piano, como um tambor, tem aspecto contrapontístico, diversificado, tem várias nuances. E é nesse sentido que enxergo o violão. No final do ano lanço um livro com enfoque didático, acompanhado de cd, falando sobre tudo isso que penso com relação ao violão. E o meu próximo disco, que já está com repertório pronto, também vai ter essa abordagem.



E o contraponto? Como foi que tu pensaste em usar essa ferramenta musical na concepção do teu novo trabalho? Tu fizeste uma pesquisa, estudaste a fundo, como foi?
Foi uma conseqüência, uma série de coisas que desembocam aí. A história é a seguinte: tempos atrás estava ouvindo mais atentamente a música do João Bosco e descobri que ele não tinha sido o primeiro a usar o violão percussivo, como pensava até então. O violão do João Bosco passa pela tradição do violão brasileiro, que já aparece no lundu. Eduardo das Neves grava o “Isto é bom” em 1904, já tocando o violão de forma percussiva, o violão já soa polifônico. Quando ouvi essa gravação tomei um susto e me dei conta que o buraco estava muito mais lá embaixo. E por essa época também já tinha ouvido o João Bosco dizer que uma das principais referências dele era o Dorival Caymmi. Então, comecei a escutar mais atentamente o Caymmi. E percebi que, além da percussividade no violão, o Caymmi faz aquela ambientação, todo um cenário sonoro sobre a interpretação e a letra, que o João Bosco também costuma fazer. E outra referência do João Bosco é o Baden Powel. Porque o Baden é um mestre em trabalhar duas coisas no violão brasileiro: a parte rítmica e o contraponto. O Baden bebeu na fonte do Pixinguinha e do Garoto. E o Garoto tem muita contribuição na parte harmônica da música brasileira. Ele antecipou muito o conceito de harmonia que foi usado na bossa nova.



Atualmente, um cara que usa toda essa tradição de que tu estás falando é o Lenine.
Sim, exatamente. O Lenine é um cara que está com um pé no futuro, no mundo, ele se considera músico do mundo, e outro nas raízes brasileiras. Isso aparece muito bem resolvido e estabelecido na música que ele faz. E sabe fazer muito bem o seu trabalho, sem discursos e bandeiras. Mas voltando ao que estava falando na resposta anterior: no violão do João Bosco ainda não aparece o contraponto, ele tem a coisa percussiva e faz contracanto, uma coisa cíclica e constante na música dele. Por exemplo, na música “Corsário”, o violão é cíclico, não contraponteia com a melodia cantada, ele só ambienta e ilustra a cena do texto. Estudei com o Fernando Mattos contraponto, forma e análise e harmonia funcional em 2000/2001. Mas esse estudo era mais voltado pra música erudita, não estava voltado pra música popular. Então, fiquei pensando como seria usar essa técnica no violão popular brasileiro. E o desafio era fazer com que o violão não soasse erudito e sim com originalidade, com essência, personalidade. Daí percebi que o João Bosco não usava contraponto, mas por conta disso redescubro o Baden. E o Baden também foi lá nas raízes, no lundu, no choro. A minha conclusão é que o contraponto no violão brasileiro aparece muito no choro e com o Pixinguinha. E com ele é extremamente significativo, genial, muito original. E o Baden assimila isso do Pixinguinha. Outro que faz contraponto é o João Gilberto. E muita gente não percebe isso. Fala-se muito da questão da harmonia, do jeito de cantar baixinho casado com o violão, disso tudo que é muito original nele, mas o João Gilberto é extremamente contrapontístico. A forma como ele estabelece o diálogo da voz com o violão é o tempo todo contrapontística. Disso tudo dá pra notar como a música brasileira é rica, e como há ainda muita coisa pra se explorar. A partir dessas conclusões passei a trazer esses elementos pro meu trabalho, na forma de tocar e de compor. Outra coisa muito importante foi ler o livro do Luiz Tatit, “Cancionista”. Nesse livro o Tatit faz uma análise do sentido entre a melodia cantada e o texto, a relação de integridade dessas duas coisas. E essa idéia se tornou significativa na minha forma de compor. Porque aí passo a me preocupar realmente que o texto seja ilustrado pelo violão, dialogando com a voz - um diálogo de camadas, a voz é uma camada, o texto é outra camada, o violão é outra camada. Isso tudo dialogando o tempo todo, não é inerte e congelado, mas dinâmico e constante. Nas músicas, “Antes dos 30”, “Chorandinho”, “Maracatu Torto”, “Percussìve”, isso aparece o tempo todo, é um diálogo constante dessas camadas, do início ao fim das músicas. Outra coisa que quero citar sobre isso: há duas pessoas as quais sou muito grato, com as quais dialogo muito sobre essas coisas, a gente pensa muito sobre isso – o compositor e professor Fernando Mattos e o Eduardo Castañera, meu professor de violão, com quem aprimorei muito a minha técnica. Faço questão de ressaltar a presença deles nesse meu processo de estudo. São dois caras para quem tiro o chapéu.



E o título Percussìvè? Essa palavra é francesa ou é neologismo?
É um neologismo. Parece um termo francês, mas é neologismo também em francês. A idéia era intitular o disco de “Percussividade”. Depois surgiram as idéias da antropofagia e do louva-deus. Então passo a ter três coisas pra explorar: a percussividade do violão, a antropofagia brasileira e a figura do louva-deus. Só que depois, procurei uma amiga que trabalha com numerologia cabalística e pedi pra transformar esse termo percussividade em uma outra coisa. E, mexendo uma palavra daqui, um acento daqui e outro dali, surgiu a palavra percussìvè. Achei legal, porque tem sonoridade e é diferente, é um neologismo tanto brasileiro como francês.



Felipe, o “Percussìvè” tem participações especiais de Marcos Suzano, na percussão, e de Mônica Salmaso, cantando a música “Tema para um compasso de espera”, além do Guinga, que escreve um texto sobre o cd. Como que aconteceu o encontro com esses grandes nomes da música popular brasileira?
O Guinga sempre me falava de brincadeira que no meu próximo disco ele ia acabar escrevendo algo sobre o meu trabalho. E essa brincadeira acabou tomando corpo e ele se dispôs a escrever mesmo, apresentando o cd. Mas o fato de o Guinga escrever num disco meu, não é só pela figura e grande artista que ele é, mas é um cara por quem tenho uma grande admiração. E a palavra dele como artista e compositor considero muito significativa. Além do que já partilhei o palco algumas vezes com ele. Acho que não teria outro cara pra apresentar o disco que não fosse ele. E a minha admiração pela Mônica vem desde quando ouvi os “Afro-Sambas”, gravado por ela e pelo Paulo Bellinati. Considero ela uma das melhores cantoras do Brasil hoje. A Mônica é extremamente diferenciada. Então, queria muito que ela cantasse uma música minha e de preferência que fosse num disco meu. E a oportunidade de conhecê-la surgiu quando vi o show dela e do Paulo aqui em Porto Alegre. Perguntei se ela tinha interesse em ouvir as minhas composições, e ela se mostrou muito receptiva e me pediu algumas gravações. Das músicas que mostrei, ela ficou muito interessada em gravar o “Tema de um compasso de espera”. O Suzano conheci também aqui, num workshop. Mostrei uma música pra ele, a gente tocou juntos e ele ficou muito empolgado, foi uma festa. Depois, quando estava produzindo o cd, fiz o convite pra ele, e ele topou de cara gravar o “Balaio de Cordas” e o “Balanço Tupiniquim”. O Suzano é um cara que está muito ligado na música brasileira e na música do mundo.




Mais Felipe Azevedo aqui


Depois do dilúvio

bargained for salvation, they gave me a lethal dose
Bob Dylan - Shelter From The Storm


Você quer saber como vão as coisas?
Eu te digo.
O que o rio não levou apodreceu, o que o barro não cobriu está doente, o que não morreu não presta, o que sobrou ninguém quer. Nada restou para os saqueadores, os abutres, os piratas sem moeda de troca. A água passou e carregou tudo que era ruim; quando acordamos vimos que não tinha sobrado nada. Seguimos com a vida, mastigando e engolindo seco, como se nada tivesse acontecido. Só os órfãos...Os órfãos não esquecem nem perdoam.
Ainda tenho algumas coisas, alguns bodes magros. Semana passada vendi um para um estrangeiro, devia ser para sacrifício, ele só queria bode preto. Daqui a pouco aparece estirado em alguma encruzilhada do lado de uma vela, não sei, não sei pra que servem os bodes. Buchada. Rabada. Puxar charrete com criança em volta de praça. Não sei pra que.
(Eu vi uma vez, lá na Vila Mimosa, um bode com uma plaquinha no pescoço. Lia-se: 5 Reais. Na verdade foi o meu primo quem viu. Ficou tão enojado que nunca mais pegou nenhuma menina lá.)
Não sei o que essa gente continua fazendo aqui, porque insistem em se afundar nesse buraco. Do que eles precisam? Praga? Nuvens de gafanhoto? Chuva de enxofre? O que ele fazem além de arrastar móveis e descascar batatas? Não tem garimpo, indústria ou cassino que salve essa cidade.
Antes do dilúvio as coisas andavam, agora elas rastejam e se enterram na lama acre. E eu sinto o cheiro de enxofre no ar, eu sinto, ele me possui e me cega em banheiros públicos, elevadores, bancos de praça. Eu não pensava na morte, mas esse cheiro, esse cheiro me faz escutar a morte rangendo seus dentes de bronze, a morte caminhando com seus pés de galinha em um piso de madeira, se aproximando rangendo os dentes. Eu desvio os olhos, procuro um ponto de luz, tropeço na calçada. Tenho medo. Tenho vergonha. Tenho culpa. E alguns bodes magros.

Minicontos de Ivana Arruda Leite



XEQUE MATE
Quem me vê com esta coroa na cabeça e este manto cravejado de brilhantes sobre as costas é incapaz de me imaginar nua embaixo do corpo de Felipe, este mesmo que se ajoelha à minha frente e me jura fidelidade como um súdito qualquer. À noite, nos aposentos reais, ele sempre expressa um certo nervosismo ao me ver de pernas abertas. Eu entendo. Não deve ser fácil comer uma rainha.
(do livro Ao homem que não me quis, ed. Agir)

GILDA
Nunca houve mulher como Gilda. Ruim como a peste. Seu prazer era atazanar a vida de quem estivesse ao redor. Na hora de escolher a profissão, foi ser manicure. Sangrava as clientes de propósito só para vê-las pulando na cadeira. Um dia foi chamada para fazer o pé de Damião. Achou o pé do rapaz tão lindo, tão macio, que não teve coragem de feri-lo. Pela manhã, ao vê-lo nu sobre a cama, comentou como se fosse sem querer: sabe que eu pensei que seu pinto fosse maior?
(do livro Ao homem que não me quis, ed. Agir)

RECEITA PARA COMER O HOMEM AMADO
Pegue o homem que te maltrata, estenda-o sobre a tábua de bife e comece a sová-lo pelas costas. Depois pique bem picadinho e jogue na gordura quente. Acrescente os olhos e a cebola. Mexa devagar até tudo ficar dourado. A língua, cortada em minúsculos pedaços, deve ser colocada em seguida, assim como as mãos, os pés e o cheiro verde. Quando o refogado exalar o odor dos que ardem no inferno, jogue água fervente até amolecer o coração. Empane o pinto no ovo e na farinha de rosca e sirva como aperitivo. Devore tudo com talher de prata, limpe a boca com guardanapo de linho e arrote com vontade, pra que isso não se repita nunca mais.
(do livro Falo de Mulher, ed. Ateliê)

NEM TUDO É VERDADE
O que me irrita nesses rapazes com quem tenho transado é a mania de querer conversar depois do sexo.
Saudade do tempo em que os homens simplesmente viravam de lado e dormiam.
Eles levaram muito a sério nossas reclamações.
(do livro Falo de Mulher, ed. Ateliê)

POR DEUS
Tira essa faca do meu peito e enterra o pau. É muito mais confortável.
(do livro Ao homem que não me quis, ed. Agir)

Melancolia radical

Há um chavão evangélico muito ouvido nas casas de detenção que reproduz a cabulosa pregação dos industriários. Diz: a mente ociosa é a oficina do diabo. É de se estranhar que na mente mais vagal não entre a mínima réstia de um propósito edificante ou que ali o bem não se aloje. Se na mente ociosa só há lugar para o mal, ou o bem é um péssimo posseiro ou no fundo é uma presença indesejável. E como seria capaz de vicejar nos mosteiros e conventos? Eis o mistério.
A ideologia sacana da frase é visível. Na origem, deve ter sido proferida por algum atucanado chefete da linha de montagem, incansável ente cegado pela função, incapaz de ver algum proveito no ócio e na contemplação. Um desses que nas ruas pregam com estridência a paz, o amor, a cordialidade e o bem, mas frustram o homem da paz consigo próprio e duvidam da faculdade para rever seus atos.
É certo que o isolamento, tal como quer a falácia burguesa das reclusões criadoras, não concede nenhum benefício destacável para a arte, nem para a vida pessoal, como recomenda os gurus da ilha de Caras. Quem sabe certa dose de concentração no que se está fazendo e algum ânimo para os projetos em que não se necessite do concurso rumoroso de outro sujeito. Sabe-se também que o conhecimento de si, no fundo, é um conhecimento de um ego ditado de fora. Constitui, afinal, uma norma programática vaga, adaptável a um desprevenido e lacunoso eu que se nega a auto-administrar-se. Quem recomenda conhece-te a ti mesmo não se reconhece nem respeita a faculdade de o outro livremente se ignorar. A viagem a si a que me refiro não se faz com pretensões epistemológicas nem com lemes talhados na consciência de si. Talvez neste exílio quem fala ao sujeito desde a proa seja uma in-consciência rebelde que não teme a ruína nem providencia a glória.
Assim, um cair fora do reino assoberbado do homem ativo e multifuncional, onde tudo, até o pensamento é esforço físico ou reflexo condicionado, talvez seja a saída possível para a mente que, tal qual um censor de internato, se atribui a toda hora a tarefa irritante de denunciar ilusões e desvarios. O iso/lamento radical a que me refiro, decerto proporciona ao homem pelo menos a consciência de tornar-se contrário aos esquemas de dominação e despersonalização intensiva. Falo, portanto, desse grave entre-instante em que após remoer sucessos, frustrações e medos, o indivíduo prepara o seu salto.
O homem sozinho é autor. Ainda que conduzido por pensamentos e objeções vindas dos vários mundos onde foi mero figurante ou peça manipulável. E ainda que todas as coisas, livremente apreendidas ou impostas, determinem por um instante parte de suas solitárias cismas, em confinamento ele está construindo algo por sua conta e risco. Enfim, é um autor; antes de ser suspeito, ele suspeita.
Quase todos os esforços da comunidade dá-se no sentido de criar mecanismos virtuais, muletas mecânicas e químicas (drogas do êxito) que a aliviem da atração perniciosa da nostalgia e da impotência. No entanto, nesse estado rente às sombras o indivíduo é perfeitamente capaz de ter consciência de seus próprios limites, o que não é pouco.
Faz tempo que esse estado de melancolia, vem sendo guindado à condição de estágio patológico mórbido e improdutivo que reduz o indivíduo a um ser vil, hesitante, pobre, claudicante, susceptível, quer dizer, humano. As normas da auto-ajuda proclamam que não se pode mais ser fiel à companhia de nossa torpeza sem que isso nos incapacite a viver em um mundo super-producente. Essa cultura, derivada da cartilha politicamente correta e que reproduz em certos momentos o repúdio trotkista à angústia individual que corrói as macro-construções políticas, tem gerado diversas formas de fascismo e distúrbios massificantes, massificados, massacrantes.
Ao homem não é dado mais ficar a sós. Virtualmente acossado, ele tem que estar acompanhado de algo, exceto dele mesmo. Ninguém pode mais tecer ao redor de si uma teia refratária às imposturas do meio. Ao homem não é dado pôr-se ao largo dos modelos programados de vida, do jogral aeróbico cotidiano. Curiosamente as teorias que abordam a emancipação do homem consideram-no somente enquanto peça de um todo, tomam como fato consumado o dogma de que o homem é somente um animal da polis, quer dizer, ente submetido às regras do compartilhamento compulsório sem, no entanto, adverti-lo de sua vida útil enquanto peça de um jogo de interesses financeiramente avaliáveis.
Mas não seria naquele outro profundo retiro onde ele se permite uma existência única, inalienável? É possível afirmar que a proibição a esse viver-à-parte-dos-ritos-do-homem-massificado nega ao sujeito suas potencialidades imaginativas, veda-lhe a porta de saída para outros mundos, outras relações críticas de e desde si mesmo e a afirmação de sua persona pelo menos nos mundos que inaugura por sua conta e risco. A vigilância a um só tempo paternalista e misericordiosa destinada ao homem produtivo e urbano, tem-se mostrado inapta para lidar com a melancolia radical, com os acessos críticos, as insurreições momentâneas. Sempre falta algo não suprível pela venturosa mão do Estado.
Close na dissidência
Em um contexto social em que a língua e a cultura não raro são apropriados por uma intenção mercadológica, tráfego de valores fincados na perspectiva do lucro, é possível indicar o recolhimento do homem a suas visões (não confundir com os glamurosos encontro consigo mesmo e os passeios com Jesus) como uma autêntica empresa de ruptura. A história sempre tomou o isolamento como apenação, represália, castigo próprio dos que não se enquadram em determinado tipo de conduta socialmente tolerável. Há, no entanto, a segregação voluntária, as fugas silenciosas do ar sufocante da ágora, e aquela inércia radical traduzida como manifestação surda de quem não tem o que festejar. Retorne-se ao bordão citado de que a mente ociosa é a morada do demônio.
Ora, o homem em estado de introspecção (Bachelard diria algo como devaneio), silencioso, isolado, nem sempre está maquinando algo, nem sempre está desperto ou disposto a mudar de estado. Nessa viagem, o bem e o mal são paraísos desprezíveis. Quer dizer, ambos não entram no espaço de um espírito que se imagina e que se dispõe a obedecer a seu silêncio. Numa mente envolvida com seus próprios impasses, dificilmente há lugar para a subserviência a esses fetiches do maniqueísmo. O viajante não quer servir nem ser servido. Aliás, ali o caráter utilitário dos gestos e das intenções encontram-se perfeitamente esgarçados, suspensos, adiados. O solitário pode estar fazendo justamente aquilo que geralmente as intensas relações sociais de múltiplo esforço não lhe permitem: pensando.
Nesse singular estado de coisa, ele também pode realizar pequenas conciliações, impensáveis projetos, absurdas reciprocidades. Medo, invenção, mundos inconciliáveis; aí o homem é ousado em sua solidão, revigora a audácia de suas hesitações desconcertantes. Pratica o seu corrosivo desprendimento; é inventivo, sob o álibi de ser nefasto somente a si, como o bêbado. Alimentando, por exemplo, uma desistência, pode até estar contrariando um projeto objetivo alheio às suas possibilidades, mas não alienará suas forças criativas a quem quer que seja. Pelo contrário, no mínimo, estará evitando uma cômoda vassalagem ao hábito. Tudo isso, a meu ver, é também performance.
Só se veja o cão, diz a idosa senhora. É um paradoxo ver-se no homem só, desarmado, desprevenido, mais força propulsora do que no homem em grupo. Visão assim talvez se justifique pela segurança e eficiência com que o tecido social é rastreado de alto a baixo pela vigilância (pública e privada), ou pela confiança (privada e pública) em que nenhuma ou quase nenhuma idéia disruptiva é mais possível de ser compartilhada com poder de fogo. Mas, afinal, seria tão sólida assim a certeza de que as insatisfações pessoais não põem mais em risco as construções do Estado? Ou que nenhuma inquietação é mais possível de perfurar a teia social sem ser previamente detectada e abortada na origem, em tempo real? O poder de duvidar já não é mais uma arma tão destruidora. Mas parece que temem que o homem taciturno retro-alimente alguma máquina de incentivar desistências, sabotagens, motins e vacilações mortais.
Cabe aqui um parêntese para considerar a estratégia camaleônica oficial, copiada do mercado, de se apropriar sutilmente das dissidências para com o mesmo arsenal de linguagem e gestos, aliciar (chantagear?) a intransigência individual para um espetáculo de aparente consenso. Na mesma arena oficial se perfilam de um lado a aquiescência oficial, de leve contrafeita, e do outro o agente indecoroso, até certo ponto aceito. Então, para alívio geral, o gesto daninho, perigoso, contraproducente, poeticamente incorreto, patrocina um lance de mórbida irreverência padronizada.
Por tudo isso, a melancolia vista como um procedimento até certo ponto trabalhado, se não imuniza o homem da interferência das idéias trazidas do entorno (algo que não nos cabe assegurar), tem-se mostrado contundente na medida em que todos os rostos se viram para um mesmo movimento coordenado por instruções desconhecidas. Então, por que subtrair o sujeito desse mundo sem recompensa, promoção e sem o mérito subalterno das produções submetidas à avaliação alheia?
Visto que as proposições ideológicas dos diversos sistemas políticos não raro se mostram ou se mostraram insuficientes ou incapazes até agora de corresponderem às vantagens públicas semeadas, por que poupar o homem de romper com uma despótica forma de destino social sem que isto signifique criar em cativeiro uma versão hipostasiada de seu falível ego? Afinal, as aberrações dos reis e dos súditos se equivalem e independem de uma circunstância propícia à catarse e à dilaceração (chantagens econômicas, extermínios, faxinas étnicas, etc.).
E já que esse estado de fuga do sujeito de forma alguma discrepa de toda uma política com vistas á construção de um ideal de cidadania que cobra diariamente do estado atos, omissões e recursos mais ou menos acessíveis, por que impedir o cidadão de fugir da ditadura do útil? Por que negar ao homem pelo menos o exercício humílimo e solitário de sua autonomia?
Que mal há em ele degustar, remoer, macerar seus desencantos informes, seus planos malogrados pela indefinição, sua intratável, intransitiva melancolia? Afinal, que mal há em permanecer na contramão dos aliciamentos despóticos da igreja, do estado e do mercado, ou alguma outra iniciativa sufragada pelo despotismo e a intolerância?
Cândido Rolim é poeta e crítico, com publicações na web, em jornais e revistas do país. Publicou os livros Exemplos Alados (1997), Pedra Habitada (2002) e Fragma (2007), entre outros. Reside atualmente em Fortaleza. Contato: candidorolim@hotmail.com

Monica Tomasi e Luiz Horácio







DUAS VOZES – música e literatura



Com o objetivo de divulgar e debater a produção musical e literária brasileira contemporânea a livraria Nova Roma, em parceria com o jornal Vaia, promove, mensalmente, o encontro de dois artistas (um músico/compositor e um escritor) para conversa, leituras de textos literários e pocket show.
O programa cultural Duas vozes – música e literatura pretende criar um espaço eclético para discussão de idéias, de todos os gêneros, grupos sociais e artísticos, tendo como linguagens a música e a literatura, além de tornar possível discutir e informar, colocando o público em contato direto com os artistas convidados para uma conversa descontraída e informal.
O evento tem duração de aproximadamente uma hora e meia e está dividido em três etapas: comentários sobre a obra dos convidados e breve entrevista; leituras e comentários dos artistas sobre seus trabalhos e participação do público e pocket show com o músico/compositor convidado.
No primeiro encontro – ocorrido em 29/09 - participaram o poeta e jornalista Nei Duclós e o escritor, compositor e músico Cláudio Levitan.
Para a edição de outubro - dia 27/10, sábado, às 1730hs – estão convidados a cantora e compositora Monica Tomasi e o escritor e jornalista Luiz Horácio.
A livraria Nova Roma está localizada na rua Gen.Câmara, 394 (telefone 30134535). A entrada é grátis.
Luíz Horácio, escritor, roteirista, professor de literatura, jornalista. Colabora com os jornais VAIA, RASCUNHO, O GLOBO, REVISTA APLAUSO, entre outros. Autor do romance Perciliana e o pássaro com alma de cão (ed. Conex -São Paulo, 2006). Natural de Quaraí-RS, vive no Rio de Janeiro.
Monica Tomasi, compositora e cantora, tem quatro cds lançados, o mais recente Quando os versos me visitam, de 2007.
Ela é assim
por Eduardo Logullo (jornalista)
“Obstinação, persistência e talento são coisas que costumam dar resultado. A gaúcha Monica Tomasi fincou os dois pés na música desde 1990, quando lançou em Porto Alegre o primeiro disco com o sintomático nome de Eu Fórica. E, assim, intuía que seria compositora e intérprete de qualidade. Seis anos depois ela decide zerar a carreira: desembarca de malas e guitarras em São Paulo. A mudança gerou o 1, CD lançado nacionalmente pelo selo Dabliú e que impulsionou a entrada da faixa Breve Estação na coletânea A Gema do Novo, ao lado de um elenco em que reluziam Rosa Passos, Ná Ozzetti e Chico César. Nada mal para um trabalho de (re)estréia. Na seqüência, o clip de Esse Tal de Samba Enredo, dirigido por Paula Trabulsi, entra na programação dos canais a cabo direcionados a públicos jovens.
A polivalência musical de Monica Tomasi é um dado importante. Como trafegava com absoluta naturalidade por diversos gêneros musicais, recebe o convite para cantar em 1998 no projeto Quarenta Anos de Bossa Nova, no mesmo palco em que se apresentavam os consagrados Alaíde Costa e Johnny Alf. Um ano depois, lá estava ela gravando duas composições da fase rocker de Roberto Carlos para o espetáculo Muito Romântico, de Naum Alves de Souza. Os outros artistas que participavam da trilha se chamavam Lenine, Zeca Baleiro, Chico César e Paulo Moska.
Boas companhias atraem coisas produtivas? Sim. Em 1999 ela participa da quarta edição do projeto Novo Canto da rádio JB FM. No evento é apadrinhada pelo guitarrista, compositor e produtor Celso Fonseca, logo transformado em importante aliado do seu trabalho. Shows com Paulinho Moska e uma série de apresentações com sua nova banda, Monica e os Garibaldos, delineiam profissionalmente os anos seguintes e a levam, em 2003, ao terceiro CD, Idéias Contemporâneas Sobre o Amor, que teve distribuição nacional pela Tratore Discos. Em 2004, pé na estrada. Com Jussara Silveira, Tião Carvalho e Nenê Quarteto, cumpre um extenso roteiro de shows pela região norte e centro-oeste do Brasil, dentro do Projeto Pixinguinha. Suas composições foram bem recebidas pelas platéias de Goiânia, Palmas, Porto Velho, Rio Branco, Cuiabá e Campo Grande. Em 2005 se apresentou em Paris e Buenos Aires.
Constantemente cheia de múltiplas investidas, o quarto CD de Monica Tomasi traduz, com musicalidade, leveza e apuro técnico, uma trajetória de artista contemporânea, assumidamente romântica e, por que não, capaz de produzir evoluções vitoriosas.”



Serviço:
DUAS VOZES – música e literatura
Conversas sobre literatura e música e pocket show com Luiz Horário e Monica Tomasi.
O jornalista e escritor Luiz Horácio e a cantora e compositora Monica Tomasi participam sábado (27/10), às 1730hs do Duas Vozes – música e literatura, projeto realizado pela Livraria Nova Roma em parceria com o jornal Vaia.
Livraria Nova Roma (Rua Gen. Câmara, 394, Centro - 51-30134535 ).
Dia 27, sábado, às 1730 horas. Entrada franca.

Leonardo Marona: 2 poemas e algumas palavras




“Chet Baker para principiantes”

é um sopro
de soldado ferido,
desordenado, árido,
silente, mas firme.
é um sopro
que se refugia
no presídio oco
da dor desmedida
no parto do som.
não são mais notas,
são sobrancelhas verticais
voltadas ao vértice
de contusões permanentes.
pois de ti a pobreza parideira
do ínfimo da maior entrega brota,
e enfim podemos, anti-vivos, ser.
é sempre tarde lacrimosa sob o seco
fatigado de um estúdio em cor sépia
quando tua silhueta me rasga de ecos.
tua corneta aponta:
segue a cadência...
apóio meu ouvido na tua desatenção,
que circunda a vida com reticências
atrás de agulhas iludidas do perdão,
em busca da raiz das conseqüências.
e tua música irrompe,
com a minha falência.





“atriz”

as palavras,
se elas saem doloridas,
é a tinta negra que sangra
as frases como feridas.
pouco me adiantam
as palavras floridas
que desabrocham no ar:
pétalas amorfas
no mofo do armário.
prefiro um dedo direito
e uma intenção sinistra.
quero de ti
a palavra comida.
quero as palavras
pelos poros da página,
pelo meio da tua virilha.
quero enfim,
segundos antes das cortinas,
escrever aquilo que te cala.



-------------

leia mais leonardo marona no blog

------------


entrevista




1- Você tem um livro de contos pronto pra ser lançado. Mas no seu blog você costuma publicar muito mais poesia do que prosa. E eu conheço mais o Leonardo Marona poeta do que o prosador. Fale sobre a sua trajetória de poeta e de quantos livros de poesia você tem escritos.
Acho que alguém disse, não lembro quem, que a prosa é a esposa e a poesia, a amante. Pois bem. Comigo tem funcionado, até aqui, exatamente ao contrário. A prosa para mim é como aquela primeira prostituta, a primeira mulher de que se tem conhecimento depois da mãe – apesar de eu nunca ter feito sexo com uma prostituta, o que talvez tenha a ver com a minha frustração precoce em relação à prosa. A poesia seria, perto da prosa, uma esposa com problemas da cabeça. Alguém que funciona aos gritos e cheio de nove-horas, mas é nesse lugar onde os verdadeiros milagres acontecem, porque eles persistem por mais que você canse. Se tivesse que falar sobre “quantos livros de poesia tenho escritos”, eu diria muitos e nenhum. Porque os poemas são sempre sozinhos, os poemas são unidades solitárias em movimento para dentro, e quanto mais para dentro mais o externo acaba sendo afetado. Preciso definitivamente arranjar um jeito de organizar os textos.


2- Ser poeta é mais talento ou esforço? Descobriu-se ou inventou-se poeta?
Só posso falar por mim, que não sou bem poeta, talvez tenha “estado poeta” por alguns dias, alguns minutos, inclusive os mais banais, mas isso de ser poeta é gênero, normalmente desempenhado pelos maus poetas, ou seja, os que vivem “da” poesia e não “para” a poesia. Porque, para mim, o poeta é como se fosse um milhão de almas penadas habitando um corpo que não lhes pertence, temporariamente e muito raramente com sabedoria. A poesia não é questão de talento nem de esforço: a poesia é uma questão de acreditar num sentimento normalmente falso, incompleto, é a coragem que se tem ao acreditar no inviável. Daí a fragilidade da poesia, perto do mundo concreto, dos poemas concretos, dos bons tradutores, dos escritores funcionais, dos compromissados em ganhar a vida. A poesia acontece fora do compromisso. A poesia tira férias enquanto os homens trabalham, mesmo que ela fale muitas vezes sobre o trabalho dos homens.


3- Quais livros (poesia e prosa) fizeram parte de sua formação?
Não se pode falar aqui ainda sobre formação – tenho só 25 anos – mas li algumas coisas legais recentemente. Um livro do Borges – que eu normalmente acho um chato, com aqueles labirintos intermináveis – mas um dele sensacional, o último de poemas: “Elogio da Sombra”. E tem também um outro especial, do Murilo Mendes: “Poesia Liberdade”. Mas se tivermos que falar a sério, eu teria que dizer “Os cantos de Maldoror”, do uruguaio aquele, Lautréamont, metido a francês, gênio puro, demônio, mas eu nunca li até o final, Dylan Thomas, Li Tai Po, François Villon, Maiakovski (dos Campos), esses são os caras. Com relação à prosa, as primeiras coisas que me impressionaram foram os contos curtos do Hemingway, tudo que li do Jack Keroauc e no rabo do foguete um batalhão de gente: o “1919” do John dos Passos é sensacional, “A Idade da Razão” do Sartre (para ser bem pedante), porque se não eu teria que falar dos contos de Charles Bukowski e das novelas de John Fante e do romance épico de Ferdinand Céline, “Viagem ao fim da noite” e de “O sol também se levanta”, do mesmo Hemingway, “Na pior em Paris e Londres” do George Orwell, tudo em prosa do Allan Poe e, tardiamente, os brasileiros: Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Campos de Carvalho, Moreira Campos, e também alguns pervertidos: Georges Bataille. Ah! “A morte de Ivan Ilitch”, do Tolstoi, é um resumo do gênio e, falando nos russos, “Memórias do Subterrâneo”, do Dostoievski, os contos curtos do Tchekov, e lembrei também de um livro importantíssimo que achei em Porto Alegre na última temporada: “Fome”, do norueguês Knut Hamsun, e mais uma meia dúzia de pessoas desconfiáveis e mortas, vivíssimas e presentes nas obras de muitos plagiadores não-assumidos.


4- Teve/tem algum incentivador? Quem?
Sim, uma vez, já faz um tempo. Era uma professora da faculdade, da matéria que eu mais odiei na faculdade, a única que eu tive que fazer duas vezes, se bem me lembro, chamava-se Metodologia de Pesquisa, era realmente insuportável. Mas a professora era legal, meio “caxias” mas gente fina, Karina ela se chamava. E veio com aquela conversa típica de uma professora de Metodologia de Pesquisa: enviou as notas aos alunos por e-mail, com algumas “dicas de leituras para as férias”. Eu achei aquilo engraçado e respondi com uma “dica de leitura” para ela, com esse meu livro de contos (Os ossos debaixo dos campos verdes), que eu tinha montado como trabalho final de outra cadeira. Ela perguntou de onde eu tinha copiado aquilo, talvez uma mania dos professores da PUC, acostumados aos alunos da PUC, e eu disse que eram meus os contos. Ela pareceu impressionada com aquilo e eu realmente, de primeira, não dei muita bola. Mas é claro que senti algo proibido pela professora, o que foi mantido por alguns meses, dentro dos quais ela tentou emplacar meu livro com o editor-chefe da editora 7Letras, daqui do Rio. O encontro com o editor foi um fracasso para mim, como escritor e cidadão – eu gaguejava, suava frio, folheava sem atenção compilações fotográficas de pessoas famintas, e ele nem mesmo aceitou receber o livro das minhas mãos, numa daquelas noites ridículas de autógrafos – e Karina talvez tenha se sentido frustrada com a minha inaptidão social, ou apenas aconteceu de ela ter mais um filho, o que é sempre complicado e acaba tomando o tempo todo das pessoas, porque nos vimos apenas duas ou três vezes depois do episódio, e então nunca mais.


5- Com que se inspira para escrever? O que é matéria para a poesia? Quando escreve, qual o efeito estético visado?
Não acho que exista um efeito estético visado, ao menos não seria visado pelo escritor, pois os efeitos cabem apenas ao leitor e a estética à respiração de cada palavra, separadamente e em conjunto. O escritor não passa de um meio ou, digamos, um selecionador. Eu acredito que a poesia é uma forma de vermos as coisas pelo seu reverso. A inspiração vem normalmente de algo que desloca a existência momentaneamente – e sempre momentaneamente – para algo que se fixa no infinito, ou seja, em algo que se almeja, mas não se alcança. A luta entre o almejado e o não alcançado, isso é poesia. Para mim, poesia é a adaptação constante entre o mundo imposto pela criação e o mundo imposto pelo ego vaidoso. A poesia é uma vergonha bem elaborada.


6- Costuma começar pelo primeiro ou pelo último verso? Qual deles é o mais difícil? O que detona o poema em você?
Essa pergunta é realmente muito difícil, porque me faz pensar pela primeira vez no assunto. Então serei falso, muito provavelmente. Direi que começo sempre pelo primeiro verso, mas nem sempre o primeiro verso pelo qual começo é o primeiro verso do poético. Às vezes é só uma liga, ou uma essência que se manterá ou se corromperá até o fim do texto. Não existe costume na poesia, isso eu posso dizer. A poesia é talvez o susto dos costumes, a detonação sem aviso das paredes sólidas. O que detona? Um cílio na cama, uma xícara vazia numa mesa listrada onde formigas trabalham, a poesia são as letras trêmulas de um ex-alcoólatra, um laço de fita pisado no chão, uma luz que incide, uma carta escrita depois do homicídio, poesia é tudo aquilo que, sorrindo, urge às escondidas.


7- Qual é a sua relação com a cidade onde mora? No que isso influencia a sua poética e se manifesta no que você escreve?
Tenho uma péssima “relação poética” com a cidade onde moro, o Rio de Janeiro. Porque o Rio tem todas as incongruências de que a poesia necessita: morte e fome, amor e mito, correria, mas não existe mais quase ninguém capaz de observá-las. É como se as pessoas fossem coadjuvantes. Sinto-me atado milimetricamente à cidade, que, pela sua enormidade, produz um silêncio nem sempre poético em espaços quase nunca bem definidos, como se a pessoa precisasse se envergonhar por não poder dar tanto em troca. Porto Alegre, que é onde nasci, faz eu me sentir melhor, como se eu entendesse os espaços vazios da cidade, que funciona noutro ritmo, tem outra cor, bem mais cinza. As cores do Rio são gritantes, ofuscam a poesia. A cidade não parece ter mais espaços flutuantes (de onde muita poesia brota), mas, também, mesmo morando há anos aqui, ainda conheço mal a cidade.


8- Como define a sua poesia? Como caracterizaria suas ambições estéticas principais?
Eu cansei de dizer aos mais próximos: “não tenho ambições”. A ponto de acreditar que sou extremamente ambicioso. Isso me causa vergonha. Porque no meu ver a poesia seria a anti-ambição, a anti-coisa-em-si, em suma, o espaço raro entre as coisas em movimento, o que proibiria o êxtase da sensação completa. Seria deus perto, o ralo do infinito. Portanto algo ainda ambíguo, necessitado de sentido, mesmo sendo o sentido o cárcere do poema. E, sinceramente, eu acho que se uma pessoa sabe definir a poesia que escreve, seria o mesmo que definir a vida que vive: quanto mais se define, mais se está preso a algo indefinido que persiste, e se apaga por desatenção. Se soubesse, certamente não escreveria mais. Um velho clichê, reconheço, mas se os clichês são clichês, vai ver eles tem algum sentido. Mais importante é pertencer à poesia, à vida ou à poesia da vida, sem tantas perguntas. Ou melhor, como dizia o poeta-mor: “Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave?” Definitivamente, ele tinha razão: “Não há criação e morte perante a poesia”.


09- Em que geração literária você se concebe? Ela tem um projeto definido?
Eu sou o típico sujeito católico não concebido, problemático redundante, louco pelas pessoas mais estranhas, mas sem saber como falar com elas, por isso escrevo sobre mim, pensando nelas. Que geração seria essa? Não sei. Projeto? Eu não tenho nem mesmo um emprego – e não me orgulho, estou procurando sem saber por onde, na verdade só funciono assim. Isso é um projeto de poesia? Espero que não. É muito difícil falar por uma geração inteira. Veja só o que aconteceu com Orson Welles, com Rimbaud, com Bob Dylan, com Artaud, com Van Gogh, com Kerouac etc...


10- Recebeu ou recebe conselhos importantes de escritores na sua trajetória? Como foi e é o diálogo com outros escritores, da sua e de outras gerações?
Eu raramente converso com escritores, por medo. Como sou um escritor e me desconfio, não acredito nos escritores, por precaução. Uma vez falei com um que leu uns textos meus e disse que eu precisava de uma unidade. O cara havia ganhado o Jabuti, eu gostei dele como pessoa, mas ainda assim era uma pessoa falando que eu precisava de uma unidade para publicar um livro. Eu aceitei as sugestões como quem não tem ainda uma unidade, um título. É muito difícil dizer o que algo inanimado precisa. Mesmo assim, esse talvez tenha sido o diálogo mais profundo que eu travei com outro escritor, “um profissional”, bem mais que o tradicional “continue escrevendo”, que você normalmente ouve de gente mais velha, desinteressada, ou jovens pretensiosos, apenas como forma de mudar de assunto, porque se de fato falar sobre literatura fosse tão interessante, por que afinal tentar escrevê-la?


11- Quanto tempo dedica à leitura de crítica literária? Concorda com a idéia de que ela, nos jornais e revistas, está mais digestivo-introdutória do que analítico-crítica?
Não leio crítica literária. Acho que, primordialmente, a crítica das principais revistas e jornais é feita por gente que gosta de discutir literatura, ao passo que literatura, na minha opinião, é indiscutível, impossível, graças a deus, haver consenso, ela deve ser escrita o melhor possível, e não discutida. Penso que grande parte da crítica dá atenção demasiada a obras medíocres, de idéias extremamente vendáveis, em detrimento de verdadeiras obras de arte, que não podem ser enquadradas assim tão facilmente e acabam muitas vezes passando em branco, muito pelo pavor do crítico que, por não ter conseguido escrever sua obra, sente-se ameaçado por algo normalmente esquisito que não pede licença antes de passar atropelando. Eu tenho certa desconfiança das tendências e das escolas, justamente por acreditar que a literatura vem das dúvidas sobre a fixação da idéia, assim como a cura vem do edema do câncer, a cura vem da percepção do inchaço. Desde criança tenho problemas com literatura acadêmica. “O que o autor quer dizer?” sempre me pareceu uma piada de mau-gosto, algo que se faz com um parente distante que chega para o almoço sem avisar e ainda traz a família. Acho que a crítica pertence aos gênios – Octavio Paz, Ezra Pound, Bernard Shaw, Arthur Schopenhauer etc – ou aos frustrados, aos que, por se sentirem no fundo massacrados, massacram. E ultimamente os gênios estão em falta.


12- A crítica literária pode influenciar a produção poética de uma geração?
Pode, é claro, se for uma produção fraca, como a nossa.


13- Muitos poetas hoje apresentam uma versatilidade acadêmica. Eles falam várias línguas, traduzem, fazem ensaios, críticas, resenhas, estudam várias disciplinas. O poeta precisa ser um erudito? Poesia só se faz com muito estudo?
O erudito pode ser um poeta, por contradição, mas nunca o contrário. Porque a poesia é um espasmo incontrolável e rígido, que deforma o corpo, é uma boca cheia de saliva, ou uma “dor de cotovelo”, como diriam falsos poetas, eruditos preocupados com seus narizes e suas análises fotográficas. Estamos com as antenas em riste quando temos sorte, ou então criamos falácias para acreditarmos no que estamos dizendo, já que no fundo sabemos que estamos enganando a maior parte do tempo.


14- Qual a relação entre a poesia e técnica? Basta dominar certas técnicas para ser poeta?
A relação é musical. Repito Pound: “A música apodrece quando se afasta muito da dança. A poesia se atrofia quando se afasta muito da música”.


15- A poesia tem prestígio no âmbito da nossa cultura?
Apenas entre os pavões. Mas é preciso poucos pavões para lotar um salão de tédio.


16- Qual a função social da poesia?
Desestabilizar verdades doentias.


17- Qual a melhor editora brasileira? E qual a que edita melhor a poesia?
Não sei. Deve ser a que procura mais pelo valor literário e pensa menos no lucro financeiro. Olha, eu leio muito mais os mortos, ou os quase mortos, então teria que dar um grande crédito a Editora José Olympio, pelas grandes antologias (Jorge de Lima, Drummond, Cecília Meireles, Vinicius, Bandeira). E tem também a Editora Perspectiva, que tem as melhores traduções de Mallarmé, Cummings, Maiakovski, através dos irmãos Campos.


18- Alguma epígrafe que o acompanha sempre?
"Aquilo que criticam, cultive-o, porque é você."(Jean Cocteau)
"Aos olhos dos outros, um homem é poeta se tiver escrito um bom poema. Aos próprios olhos, ele é poeta apenas no momento em que faz a última revisão num novo poema. No momento anterior, era apenas um poeta em potencial; no momento seguinte, é um homem que parou de escrever poesia, talvez para sempre." (W. H. Auden)


19- Qual é hoje a marginália da poesia brasileira? Ela ainda é possível depois da internet?
Sinceramente, não tenho a menor idéia. A marginália se tornou uma caricatura bizarra, porque antes os marginais pelo menos gritavam por alguma coisa, alguma idéias, contra coisas bem definidas, por mais que passageiras. Agora o marginal grita em favor da marginalidade, ele a cultiva, precisa mantê-la. Antes os jovens eram os marginais, porque não queriam o sistema da tortura e da censura. Hoje os jovens são marginais para serem atraentes, mas querem manter todas as vantagens que puderem tirar dessa representação forjada. A marginalidade antes procurava quebrar para reconstruir. Hoje ela apenas quebra, e vive os lucros disso. Diferentemente do que se fala por aí, acho que a internet facilita a vida dos oportunistas, mais do que da gente séria. Porque existe uma fachada de liberdade sob uma couraça de publicidade do tipo mais barato, no mau sentido, que movimenta o dinheiro e as fraquezas mais retumbantes.


20- O que pensa sobre o jornal Vaia?
Gosto do fato de ser um jornal gratuito, acho interessante começar a pensar em chupar essas multinacionais para financiar a distribuição de cultura (é uma boa forma de compensação), com uma estrutura maleável, mas sem compromisso ideológico com grandes facções criminosas disfarçadas de “ajuda aos necessitados”. Mas, de fato, tudo o que eu posso falar sobre o jornal resume-se a uma pessoa apenas, que ajuda na produção e que eu conheci sem querer em Porto Alegre (e nos entendemos bebendo) – fico pensando se foi tudo mesmo tão sem querer. Essa pessoa é você, Fernando Ramos.


21- Repetindo uma pergunta que a Clarice Lispector sempre fazia: O que é mais importante na sua vida?
Perguntas como essa, cujas respostas hesitam.