Entrevista com Felipe Azevedo, compositor e violonista





Felipe, quero começar te pedindo pra falar sobre a concepção do Percussìve e sobre a idéia da figura do louva-a-deus, que aparece no encarte do cd.
A idéia conceitual do cd, tive quando fiz turnê na Europa. Lá tive a percepção do Brasil e me enxerguei como brasileiro de fora pra dentro. Foi uma coisa bastante impactante. Foi muito contrastante ver as diferenças de cultura e costumes de um lugar para o outro. Antes da turnê tinha uma idéia do que ia fazer, das coisas que ia falar no disco, que era falar sobre a brasilidade e tentar expor uma visão minha de um Brasil abrangente. Depois dessa experiência forte, uma série de questionamentos e reflexões me ocorreram. Vieram-me vários caminhos, várias respostas, em termos de conceito, uma forma de trabalhar o disco. A partir daí, várias músicas começam a surgir, entre elas “Balanço Tupiniquim”,“Canibalismoderno”,“Norato Cyber Cobra”. Também percebi a questão da antropofagia cultural, que é uma coisa bem forte do Brasil. Então pensei em retomar o conceito da antropofagia na minha música. E precisava de um símbolo, um ícone que representasse essa minha idéia. E decidi por usar a figura do louva-a-deus. Um dia, lendo um texto do Guimarães Rosa, (tem um trecho dele no encarte do cd) encontrei, pra falar da antropofagia e ao mesmo tempo da brasilidade na música, a idéia que esse inseto representa. O louva-deus tem vários nomes e significados em cada cultura. Para os muçulmanos, por exemplo, é um símbolo de fortuna, de sorte.



Num dos textos do encarte do cd tu fazes a seguinte pergunta: “o que ainda resiste do antropofagismo do Oswald de Andrade?” Comenta isso pra gente.
Acho que essa é uma pergunta que o artista brasileiro deve se fazer, deve pensar sobre isso. É um questionamento para o qual eu não tenho resposta, é uma indagação minha. Outra pergunta que faço é: até que ponto a antropofagia pela antropofagia vale a pena, a devoração pela devoração? Se for por aí, a gente acaba fazendo uma pasteurização de idéias. E o artista deve se perguntar sobre isso, e não simplesmente dizer: “vamos ser antropofágicos, vamos devorar, e isso é a nossa estética”. Acho que não é por aí. Às vezes, sinto falta de uma essência. Por exemplo, escuto Lia de Itamaracá e me emociono muito. E a gente sabe que ali tem toda uma tradição de cultura oral construída de uma forma muito verdadeira. Então, às vezes, com a mistura, esse tipo de essência acaba se perdendo. No meu disco, por exemplo, tem uma música, “Chorandinho”, que é um cateretê, em que reaproprio uns versos do Cancioneiro Guasca, do João Simões Lopes Neto, e os reapresento com o cateretê, que é um ritmo que surge lá com os jesuítas. E o que é legal na música é que falo duma coisa pura, singela, do popular, com uma abordagem contrapontística, sob o meu enfoque, ou seja, como penso o contraponto no violão e na música brasileira. E acho que dessa maneira as coisas me parecem mais sinceras. Não quero com isso estabelecer parâmetros, de forma alguma, mas é o que penso.



Tu fizeste uma leitura do Cobra Norato. Que elementos tu retiraste da lenda pra conceber a música “Norato Cyber Cobra”?
São duas coisas: primeiro tinha lido o livro “Antropologia do Ciborgue”, do Donna Arley, e em seguida o poema Cobra Norato. Pensei: daria pra recontar essa lenda numa visão pós-moderna, uma visão futurista. E comecei a pensar na história, e aí a idéia do cobra devorador. Além do que tem aquela expressão “o cara é cobra no assunto, esse cara sabe esse assunto, esse cara domina esse assunto”. Então, Norato como um cobra, um intelectual que é absorvido pela busca dele, pelo conhecimento dele. Na letra da música o personagem levava uma vida pacata. Uma figura típica que se encontraria em qualquer lugar do mundo ao mesmo tempo em que se enquadra dentro de um perfil brasileiro. Esse cara, no momento em que ocorre a sua transformação em cobra, à medida que vai devorando as coisas, vai se transformando em um ciborgue, em máquina. Aí, se dá uma coisa que é bem característica da nossa época, que é a questão da devoração pela devoração. Vai se devorando, consumindo e destruindo muitas vezes. E nesse processo, Norato está num encantamento em que luta com a Cobra, devora a Cobra e se transforma em Cobra. E na medida que ele vai devorando ele vai ficando cada vez mais máquina, só que a essência dele é humana. Mas ele só se dará conta disso quando se apaixona, se reencontra, redescobre o amor. A diferença é que, no texto do Raul Bopp, Luzia era a rainha e a filha da Luzia era quem o Cobra Norato ia tentar salvar da Cobra Grande...



... na Terra do Sem fim.
...na Terra do Sem Fim. Nessa minha adaptação a Luzia seria a personagem pela qual ele se apaixona, que ele vê no outdoor. Aí ele vai se apaixonar e sentir aquilo que há muito tempo não sentia, sentimentos humanos. Ele se descobre quando chega perto dela buscando a sedução, sibilando como uma cobra, mas completamente apaixonado, erotizado, sensual. Ele quebra o seu próprio encanto porque se apaixona e vivencia o amor. E ela, que parecia ser humana, para surpresa dele é um ciborgue e ele não. A coisa se dá aí, um contraste com o final da lenda. A discussão que tento trazer aí é enxergar essa figura como uma máquina. E essa história do ser humano com cada vez mais peças de máquina no corpo e menos elementos humanos dentro de si. Quase como um congelamento de sentimentos e valores. Acho que as pessoas têm sentido falta disso.



Na música “Balanço Tupiniquim”, que é uma mistura de embolada e milonga, é intencional o duplo sentido?
É sim, no sentido de balançar e de fazer um balanço. Com relação aos ritmos, ocorre o seguinte: tem a mistura da embolada com a milonga. A idéia era lançar um olhar sobre o país, usando os mais variados ritmos. Como sou do RS, tinha que citar algo daqui, não era obrigatório, mas era a deixa. Acho que a milonga é um dos gêneros mais representativos daqui. Então pensei em misturar as duas coisas, tentando casar forma e discurso nessa música. Essa música é uma reflexão sobre as questões referentes à brasilidade e ao que é ser brasileiro, uma pergunta e um balanço.



E tu tiveste algum receio ou dúvida em fazer um disco conceitual nos dias de hoje? Ou era o tipo de trabalho que fatalmente tu virias a realizar, não tinha como fugir?
Acho que não tinha como fugir disso. Quis colocar a minha visão das coisas. Sem, é claro, me colocar como dono da verdade. E nem coloco o que estou dizendo como ponto final da questão. O disco é conceitual porque tem muita reflexão, tem textos, trânsito por autores e referências, tudo sem preocupação de encerrar o assunto. É a minha versão. No encarte, antes de cada música tem um texto, para que isso funcione como um roteiro e como orientação e referências sobre cada uma das músicas. Isso dá uma idéia de viagem, de passeio sobre determinado tema, que começa e encerra com o canto de um índio caingangue.



Felipe, fala um pouco sobre as etapas do teu processo de trabalho desde o primeiro disco até chegar ao Percussìve.
O Cimbalê, lançado em 1998, tinha um caráter cosmopolita, abrangente no sentido de texturas e timbres sonoros e muito diversificado com relação a timbres. O Identidades também tem o caráter cosmopolita, porque tinha o encontro de um brasileiro com um suíço (Olivier Forel). Mas nesse o enxugamento é radical, porque a variedade de timbres que apareciam no Cimbalê agora se sintetiza no violão e no acordeão, e com duas estéticas autorais diferentes sem que conflituem entre si, mas dialoguem. No Percussìve, adoto um posicionamento bem radical sobre vários aspectos, onde descarto muita coisa em detrimento de outras – descartei bateria, baixo, guitarra e foquei no violão. A coluna cervical desse disco é o violão. Porque o violão tem a característica de ser percussivo, e isso é uma das coisas principais do disco, mas também exerce a função de acompanhamento, é contrapontístico e também orquestral. Ou seja, é um violão múltiplo. E isso é a principal característica com o que me identifico e que tem muito da herança do violão popular brasileiro. Ele sai do padrão típico de acompanhamento e soa como um piano, como um tambor, tem aspecto contrapontístico, diversificado, tem várias nuances. E é nesse sentido que enxergo o violão. No final do ano lanço um livro com enfoque didático, acompanhado de cd, falando sobre tudo isso que penso com relação ao violão. E o meu próximo disco, que já está com repertório pronto, também vai ter essa abordagem.



E o contraponto? Como foi que tu pensaste em usar essa ferramenta musical na concepção do teu novo trabalho? Tu fizeste uma pesquisa, estudaste a fundo, como foi?
Foi uma conseqüência, uma série de coisas que desembocam aí. A história é a seguinte: tempos atrás estava ouvindo mais atentamente a música do João Bosco e descobri que ele não tinha sido o primeiro a usar o violão percussivo, como pensava até então. O violão do João Bosco passa pela tradição do violão brasileiro, que já aparece no lundu. Eduardo das Neves grava o “Isto é bom” em 1904, já tocando o violão de forma percussiva, o violão já soa polifônico. Quando ouvi essa gravação tomei um susto e me dei conta que o buraco estava muito mais lá embaixo. E por essa época também já tinha ouvido o João Bosco dizer que uma das principais referências dele era o Dorival Caymmi. Então, comecei a escutar mais atentamente o Caymmi. E percebi que, além da percussividade no violão, o Caymmi faz aquela ambientação, todo um cenário sonoro sobre a interpretação e a letra, que o João Bosco também costuma fazer. E outra referência do João Bosco é o Baden Powel. Porque o Baden é um mestre em trabalhar duas coisas no violão brasileiro: a parte rítmica e o contraponto. O Baden bebeu na fonte do Pixinguinha e do Garoto. E o Garoto tem muita contribuição na parte harmônica da música brasileira. Ele antecipou muito o conceito de harmonia que foi usado na bossa nova.



Atualmente, um cara que usa toda essa tradição de que tu estás falando é o Lenine.
Sim, exatamente. O Lenine é um cara que está com um pé no futuro, no mundo, ele se considera músico do mundo, e outro nas raízes brasileiras. Isso aparece muito bem resolvido e estabelecido na música que ele faz. E sabe fazer muito bem o seu trabalho, sem discursos e bandeiras. Mas voltando ao que estava falando na resposta anterior: no violão do João Bosco ainda não aparece o contraponto, ele tem a coisa percussiva e faz contracanto, uma coisa cíclica e constante na música dele. Por exemplo, na música “Corsário”, o violão é cíclico, não contraponteia com a melodia cantada, ele só ambienta e ilustra a cena do texto. Estudei com o Fernando Mattos contraponto, forma e análise e harmonia funcional em 2000/2001. Mas esse estudo era mais voltado pra música erudita, não estava voltado pra música popular. Então, fiquei pensando como seria usar essa técnica no violão popular brasileiro. E o desafio era fazer com que o violão não soasse erudito e sim com originalidade, com essência, personalidade. Daí percebi que o João Bosco não usava contraponto, mas por conta disso redescubro o Baden. E o Baden também foi lá nas raízes, no lundu, no choro. A minha conclusão é que o contraponto no violão brasileiro aparece muito no choro e com o Pixinguinha. E com ele é extremamente significativo, genial, muito original. E o Baden assimila isso do Pixinguinha. Outro que faz contraponto é o João Gilberto. E muita gente não percebe isso. Fala-se muito da questão da harmonia, do jeito de cantar baixinho casado com o violão, disso tudo que é muito original nele, mas o João Gilberto é extremamente contrapontístico. A forma como ele estabelece o diálogo da voz com o violão é o tempo todo contrapontística. Disso tudo dá pra notar como a música brasileira é rica, e como há ainda muita coisa pra se explorar. A partir dessas conclusões passei a trazer esses elementos pro meu trabalho, na forma de tocar e de compor. Outra coisa muito importante foi ler o livro do Luiz Tatit, “Cancionista”. Nesse livro o Tatit faz uma análise do sentido entre a melodia cantada e o texto, a relação de integridade dessas duas coisas. E essa idéia se tornou significativa na minha forma de compor. Porque aí passo a me preocupar realmente que o texto seja ilustrado pelo violão, dialogando com a voz - um diálogo de camadas, a voz é uma camada, o texto é outra camada, o violão é outra camada. Isso tudo dialogando o tempo todo, não é inerte e congelado, mas dinâmico e constante. Nas músicas, “Antes dos 30”, “Chorandinho”, “Maracatu Torto”, “Percussìve”, isso aparece o tempo todo, é um diálogo constante dessas camadas, do início ao fim das músicas. Outra coisa que quero citar sobre isso: há duas pessoas as quais sou muito grato, com as quais dialogo muito sobre essas coisas, a gente pensa muito sobre isso – o compositor e professor Fernando Mattos e o Eduardo Castañera, meu professor de violão, com quem aprimorei muito a minha técnica. Faço questão de ressaltar a presença deles nesse meu processo de estudo. São dois caras para quem tiro o chapéu.



E o título Percussìvè? Essa palavra é francesa ou é neologismo?
É um neologismo. Parece um termo francês, mas é neologismo também em francês. A idéia era intitular o disco de “Percussividade”. Depois surgiram as idéias da antropofagia e do louva-deus. Então passo a ter três coisas pra explorar: a percussividade do violão, a antropofagia brasileira e a figura do louva-deus. Só que depois, procurei uma amiga que trabalha com numerologia cabalística e pedi pra transformar esse termo percussividade em uma outra coisa. E, mexendo uma palavra daqui, um acento daqui e outro dali, surgiu a palavra percussìvè. Achei legal, porque tem sonoridade e é diferente, é um neologismo tanto brasileiro como francês.



Felipe, o “Percussìvè” tem participações especiais de Marcos Suzano, na percussão, e de Mônica Salmaso, cantando a música “Tema para um compasso de espera”, além do Guinga, que escreve um texto sobre o cd. Como que aconteceu o encontro com esses grandes nomes da música popular brasileira?
O Guinga sempre me falava de brincadeira que no meu próximo disco ele ia acabar escrevendo algo sobre o meu trabalho. E essa brincadeira acabou tomando corpo e ele se dispôs a escrever mesmo, apresentando o cd. Mas o fato de o Guinga escrever num disco meu, não é só pela figura e grande artista que ele é, mas é um cara por quem tenho uma grande admiração. E a palavra dele como artista e compositor considero muito significativa. Além do que já partilhei o palco algumas vezes com ele. Acho que não teria outro cara pra apresentar o disco que não fosse ele. E a minha admiração pela Mônica vem desde quando ouvi os “Afro-Sambas”, gravado por ela e pelo Paulo Bellinati. Considero ela uma das melhores cantoras do Brasil hoje. A Mônica é extremamente diferenciada. Então, queria muito que ela cantasse uma música minha e de preferência que fosse num disco meu. E a oportunidade de conhecê-la surgiu quando vi o show dela e do Paulo aqui em Porto Alegre. Perguntei se ela tinha interesse em ouvir as minhas composições, e ela se mostrou muito receptiva e me pediu algumas gravações. Das músicas que mostrei, ela ficou muito interessada em gravar o “Tema de um compasso de espera”. O Suzano conheci também aqui, num workshop. Mostrei uma música pra ele, a gente tocou juntos e ele ficou muito empolgado, foi uma festa. Depois, quando estava produzindo o cd, fiz o convite pra ele, e ele topou de cara gravar o “Balaio de Cordas” e o “Balanço Tupiniquim”. O Suzano é um cara que está muito ligado na música brasileira e na música do mundo.




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Um comentário:

Anônimo disse...

o que eu estava procurando, obrigado