Depois do dilúvio

bargained for salvation, they gave me a lethal dose
Bob Dylan - Shelter From The Storm


Você quer saber como vão as coisas?
Eu te digo.
O que o rio não levou apodreceu, o que o barro não cobriu está doente, o que não morreu não presta, o que sobrou ninguém quer. Nada restou para os saqueadores, os abutres, os piratas sem moeda de troca. A água passou e carregou tudo que era ruim; quando acordamos vimos que não tinha sobrado nada. Seguimos com a vida, mastigando e engolindo seco, como se nada tivesse acontecido. Só os órfãos...Os órfãos não esquecem nem perdoam.
Ainda tenho algumas coisas, alguns bodes magros. Semana passada vendi um para um estrangeiro, devia ser para sacrifício, ele só queria bode preto. Daqui a pouco aparece estirado em alguma encruzilhada do lado de uma vela, não sei, não sei pra que servem os bodes. Buchada. Rabada. Puxar charrete com criança em volta de praça. Não sei pra que.
(Eu vi uma vez, lá na Vila Mimosa, um bode com uma plaquinha no pescoço. Lia-se: 5 Reais. Na verdade foi o meu primo quem viu. Ficou tão enojado que nunca mais pegou nenhuma menina lá.)
Não sei o que essa gente continua fazendo aqui, porque insistem em se afundar nesse buraco. Do que eles precisam? Praga? Nuvens de gafanhoto? Chuva de enxofre? O que ele fazem além de arrastar móveis e descascar batatas? Não tem garimpo, indústria ou cassino que salve essa cidade.
Antes do dilúvio as coisas andavam, agora elas rastejam e se enterram na lama acre. E eu sinto o cheiro de enxofre no ar, eu sinto, ele me possui e me cega em banheiros públicos, elevadores, bancos de praça. Eu não pensava na morte, mas esse cheiro, esse cheiro me faz escutar a morte rangendo seus dentes de bronze, a morte caminhando com seus pés de galinha em um piso de madeira, se aproximando rangendo os dentes. Eu desvio os olhos, procuro um ponto de luz, tropeço na calçada. Tenho medo. Tenho vergonha. Tenho culpa. E alguns bodes magros.

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