Retrato da Literatura enquanto vida

A pluralidade de gêneros numa obra implica, via de regra, em sérios problemas. O maior deles, falar de tantos quase nada. Felizmente isso não acontece com O Texto, ou: A Vida, mais recente produção de Moacyr Scliar.
Pela mesma trilha de Vita Nuova de Dante Alighieri, Scliar lança mão das possibilidades que a literatura oferece e coloca vida na literatura e literatura na vida. Na sua e na do leitor.
É de se esperar que um livro com tal característica não seja um exemplo de aprofundamento de abordagem em todos os temas, a não ser que atingisse a marca de umas três mil páginas. O livro de Scliar, no entanto, conta imprescindíveis 272 páginas. O que pode parecer pouco vale muito mais que as famigeradas oficinas de criação literária que pululam país afora. Inclua no rol das oficinas os patéticos e mal intencionados cursos superiores para formação de escritores.
O detalhe que poderia gerar uma confusão confere a O Texto,ou:A Vida sua maior qualidade, seu maior atrativo. O fato de o autor entremear sua produção, crônica, contos, romances, ensaios, etc..., com dados biográficos permitem ao leitor se colocar na cadeira reservada aos alunos que escutam o professor. Ler esse livro é como estar diante do mestre que supera os limites da teoria. Mas engana-se quem acreditar que as lições se resumem ao universo literário. O autor trabalha com um detalhe insignificante à maioria das biografias, a verdade, e é dessa verdade que o leitor perceberá a humildade, a elegância, o amor à família, à medicina, à literatura, à vida.
Do estudante de medicina que até então sonhava com a ascenção social ao primeiro contato com a dor, com a morte em sua inaugural aula de anatomia ao famoso episódio do suposto plágio da novela Max e os felinos pelo canadense Yann Martel, sem esquecer o aspecto social, inclua-se aí a medicina praticada por Scliar. É bastante comum a cobrança de uma postura política por parte dos intelectuais, confesso que não engrosso tais fileiras da exigência, mas o criador politizado já se apresenta em seu primeiro livro, O Carnaval dos animais, de 1968, Mês de cães danados e O Exército de um homem só são apenas mais dois exemplos entre tantos.
Quando mencionei suposto plágio ao me referir à novela de Yann Martel que tem o título de The Life of Pi foi porque Scliar, embora aconselhado a processar o canadense satisfez-se com um agradecimento ao seu trabalho no prefácio da edição seguinte. Um exemplo da opção do autor pela literatura. Convém lembrar que vivemos a moda do processo onde não se pode desprezar oportunidade para levantar um troco.
Então voltemos ao título do livro onde texto e vida se tornam sinônimos, ou melhor, adentremos à sala de aula.
Oportunidade para ouvirmos o autor falar sobre o nascimento de alguns de seus textos, ora crônicas, ora contos ou romances. Importante enfatizar que a maioria surgiu da observação do cotidiano, não há varinha de condão, sobra dedicação e inquietação.
Dos conflitos religiosos da infância Scliar extraiu a novela Os deuses de Raquel (1975), atenção: ao final deste texto voltaremos a essa novela. Ela explica o etc...lá de cima. Mitologia grega, tradição gaúcha, humor judaico e o realismo mágico é a combinação de ingredientes que fez O centauro no jardim (1980), imperdoável a não leitura dessa obra.
Estou esperando dos alunos das oficinas literárias e faculdades de formação de escritores uma fórmula que os tenha ensinado criatividade a esse nível. Está na hora de tratarmos a literatura com o devido respeito. O Texto, ou: A Vida é também uma homenagem à literatura, vale a pena ler o livro apenas para você ficar sabendo quais escritores influenciaram Scliar, vale a pena a leitura para você ficar sabendo como se faz literatura, vale para os estudantes de letras que em seus cursos debatem o debatido, concluem o concluído e os transformam em meros reprodutores do conhecimento descartável. Não sei se vocês sabem, mas a moda ainda é descobrir se Capitu traiu ou não o Bentinho.
Resumo da ópera: se a Beatriz não foi suficiente para aplacar a sede de amor e vida de Dante, Scliar fez da literatura, da família, da medicina, fazendo jus ao juramento de Hipócrates, da vida em última instância suas Beatrizes.
Quanto ao etc. ele se refere à novela Os deuses de Raquel onde Scliar desmente a orelha do livro. Ele também é poeta!

Luiz Horácio
Escritor e jornalista, autor do romance Perciliana e o pássaro com alma de cão (ed. Conex, SP, 2006).

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