3 Contos


A DOR DE SER BRASILEIRO
Era uma vez um homem e, portanto, um vitorioso. Na corrida contra bilhões de espermatozóides, ele chegara na frente. Era vitorioso também porque durante a gestação sua mãe não sofrera nenhuma queda e tampouco adoecera.
Ele nascera bonito e normal. Um homenzinho que tinha todo o mundo para desfrutar. Beleza pura, mas nem tanta. Logo descobriu que nascera preto, pobre e brasileiro.
O leitor que acha que não temos racismo no Brasil reclamará, mas reclamará errado. Nosso racismo é tão grande que não é privilégio de pretos ou mulatos. Ele atinge os pobres em geral, desempregados ou não. Claro que os pretos são suas maiores vítimas. Quanto mais negros, mais padecem, e a eles sobrarão sempre os últimos lugares, os empregos mais humildes e mais mal pagos.
Para os pretos que não quiserem viver infelizes só há uma saída: precisam enriquecer. Para enriquecerem terão de fazer dez vezes mais esforço do que os brancos. Nessas tentativas, pois assim quer um sistema louco e adorador de ídolos, perde-se o caráter e ganha-se em subserviência; perde-se a naturalidade e ganha-se um sorriso cortado à faca no rosto.
Junto com a naturalidade e a posição ereta ganha-se também uma espinha dorsal de borracha. Mas João, embora soubesse disso, não deixaria que acontecesse com ele. Os pretos, se enriquecerem muito, ficarão brancos como Pelé. O preço que terão de pagar por isso: só terão amigos brancos e, na maioria, mal-intencionados. Como afastaram-se dos amigos, estes também se afastaram deles. Tornaram-se párias com uma identidade no bolso e outra, a verdadeira, no coração.
A mulher preta e pobre, caso seja bonita, poderá tentar sua independência como cantora, atriz, modelo, mas há muita competição nesse universo artificial. Por outro lado, o homem preto que vence na vida não sente que é preto. Nos filmes policiais americanos, os racistas até se divertem com isso. Colocam um preto sempre como chefe dos detetives. Irritado, ele vive dando os maiores esporros nos seus detetives brancos. Mas seu papel é pequeno e, na vida real, a coisa é outra. Alguém aí da platéia poderá argumentar que Michael Jackson ficou branco e ainda dá a sorte de ser adorado por centenas de milhões de pobres negros e brancos.
Não creio que meu personagem, João Souza da Silva, almejasse ser amado como Michael Jackson ou como seu ídolo, Lula. João, por sinal gaúcho e nascido em 1958, queria trabalhar e ser feliz. Seu pai era leiteiro e a mãe era de prendas domésticas. Tinha irmãos e irmãs mais moços e mais velhos. Viviam com sacrifício, mas não faltava comida, escola, bebida e nem teto.
À medida que cresciam, as crianças ajudavam no orçamento. João Souza da Silva engraxava sapatos e vendia jornais enquanto fazia o primário. Gostava muito de ler e queria fazer o vestibular. A realidade, porém, mostrou-lhe o seu lugar e ele fez o curso de contabilidade. Apaixonou-se por uma jovem colega dois anos mais moça. Como viviam numa época em que o sexo entre adolescentes não só era moda como era incentivado pelos meios de comunicação, a carne falou mais alto.
Bom nome para uma novela das oito: A carne falou mais alto, com Vera Fischer. Falou tão alto que sua namorada engravidou. Como se amavam, ele fez o que qualquer rapaz direito faria: casou-se com ela. Foram morar com a família dela, que queria um casamento melhor para a filha. Durante anos João trabalhou nas mais diversas áreas até que, finalmente, passou num concurso para um banco particular. Com o salário pôde alugar um apartamento no subúrbio.
João continuava noite afora trabalhando como chofer de táxi. Trabalhava das seis da tarde às três da manhã. Poderia dormir nos fins de semana, mas, no sábado, tinha reunião no PT local, onde era segundo-secretário. E domingo era o dia em que não precisava pagar a diária ao vizinho, dono do carro. As duas filhas estavam na faculdade. Uma fazia jornalismo e a outra, geografia. Como todo pobre que se preza, não queria que as filhas passassem o que ele passara e por isso não as deixava trabalhar.
Lula se elegeu, mas as coisas não melhoraram. Seu salário continuou congelado e os vizinhos não queriam mais saber do futuro, pois este já se apresentava em toda a sua cruel realidade naquele subúrbio afastado de Porto Alegre. Seis meses antes fora demitido na agência em que trabalhava. Mandaram-no procurar um advogado. Envergonhado, nada contou à família. Logo gastou as poucas economias e teve de pedir dinheiro emprestado. Para esquecer-se do que devia e das mentiras passou a beber. Uma noite, verificou que se tornara impotente e, no dia seguinte, deu um tapa na filha, que lhe disse que ele cheirava a bebida. Bebeu no Centro até o fim do expediente, mas, em vez de pegar o ônibus para casa, pegou o ônibus para a rodoviária.
No Rio passou três dias sem comer nada, até ser levado pela polícia para um abrigo de indigentes, de onde fugiu. Imagino como deve ter sido duro para ele pedir esmolas. Ele sabia que não era um mendigo, era um bancário, um trabalhador. Poderia ter sido até mesmo um doutor, se não precisasse ajudar a família. Agora era parte da legião, mas tomava banho todos os dias e mantinha seu paletó e gravata, bem como seus documentos em dia.
Não queria ser confundido com louco algum. Ele estava aleijado por dentro, não sabia que já desistira e vagamente lembrava da família, mas ainda olhava nos olhos das pessoas como se não fosse um mendigo. Como se dissesse: "Apesar do que vocês possam pensar, eu sou um homem e não um cachorro". Só quem já necessitou sabe quão terrível é a dor daquele que necessita; a dor moral que se torna física e faz enlouquecer.
João Souza da Silva, o trabalhador negro e bancário, acabou na Barra da Tijuca no dia da inauguração do Fashion Rio. Ele do lado de fora e do lado de dentro algumas das mulheres mais belas e alguns dos homens mais ricos do mundo. Na Barra da Tijuca - um inferno de samambaias, vidraças fumé, drogas e ar-condicionado - não tem esquina e os sinais de trânsito surgem eventualmente a cada dois mil metros. Isso ocorre porque a Barra não foi feita para pedestres. Foi feita para caçadores ricos. E um desses caçadores do volante matou João Souza da Silva, homem de bem, negro, brasileiro, desempregado, como milhões de brasileiros.
João foi morto por um canalha que nem parou para ver em que batera. Morto ficou durante cinco horas sob o sol brabo. Morreu numa terça-feira de tarde, enquanto ladrões riquíssimos insultavam-se mutuamente no Congresso. Enquanto ladrões riquíssimos olhavam excitados os corpos de modelos adolescentes no Fashion Rio. Enquanto Olavo Setúbal, dono do Banco Itaú, dizia a um repórter: "Um dos maiores prazeres do mundo é poder viajar pelo mundo sem obrigação de trabalho.
As jovens modelos que já haviam desfilado resolveram tomar refrigerantes do lado de fora do shopping. A 50 metros de distância viram uma pequena multidão e dirigiram-se até ela. A mais bonita das modelos aproximou-se do corpo, jogado na calçada.
Era o nosso João, ainda belo, ainda bem vestido. Olhos fechados, expressão aliviada no rosto. Só era possível saber que estava morto por causa do sangue que saía do seu ouvido. Ela, a modelo, ex-miss, teve uma reação de leitora de contos de fada. Enquanto duas lágrimas desciam pelo rosto de menina a quem haviam obrigado ser mulher antes do tempo, desde que via os programas da Xuxa, exclamou para todos e para ninguém:
- Se ele fosse um príncipe já o teriam levado.
O mais irônico nisso tudo é que ele era um príncipe.

Fausto Wolff, gaúcho, jornalista e escritor, publicou “A Milésima Segunda Noite” (romance, Ed. Bertrand, 2005). http://www.faustowolff.org/

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BANDEIRAS
Se eu fosse Antonio, eu teria me pedido pra preparar aquela ceia de Natal, porque sendo Antonio eu ia querer aglomerar as famílias, enfeitar árvore, comer panetone e tocar jingle bells.
Se eu fosse Antonio eu teria ligado pessoalmente pra mãe, irmão, sogra, cunhados, lagartixas e papagaios. Teria organizado aquele malfadado amigo secreto, listando os presentes e preestabelecendo os valores, porque Antonio é pura organização.
Antonio usa gravata e passa gel no cabelo.
Se eu fosse Antonio eu teria recebido todos com um sorriso aberto e um abraço sincero (Antonio fica todo emocionado com esse lance de família).
Se eu fosse Antonio eu ia achar natural que, naquele clima de confraternização, alguns se excedessem na bebida. “Imagina, é dia de festa”. “Uma vez na vida todo mundo tem direito”. Afinal, ser Antonio é isso aí. Tolerância pura.
Se eu fosse Antonio, quando meu irmão, ainda vestido de papai-noel, começasse a gritar com a mulher chamando-a de piranha e coisa e tal, acusando-a de dar mole pro idiota do Arnaldo, eu teria tentado pôr panos quentes. Daria um sorriso amarelo. “Afinal, é coisa normal”. “Casal é assim mesmo”. “Nada que uma conversa a sós não resolva”. E por aí vai. Ou ia, porque Antonio é assim. Antonio não dá bandeira, não assume vexame.
Se eu fosse Antonio, eu não teria como adivinhar que o irmão, sentindo-se contrariado e já de saco cheio, se transformasse num papai-noel ensandecido e, babando na barba torta, gritasse, bem no meio da sala, que de corno conformado bastava um na família.
Se eu fosse Antonio, eu não suportaria todos os olhares acesos em minha cara, mas ainda assim eu teria disfarçado, alegado insanidade temporária, sei lá, Antonio é inteligente pra cacete, tem desculpa pra tudo.
Mas até Antonio um dia desata as estribeiras.
Agora, eu sendo eu não podia prever é que Antonio não suportasse aquela afirmação e pegasse o irmão pela gola e o enxotasse pra fora de casa, aproveitando pra falar bem na cara de todos que eles eram uma cambada de parasitas e coisa e tal.
Eu sendo eu, ia ficar petrificada quando, uma vez a sós comigo, Antonio me aplicasse uma surra daquelas.
Eu sendo eu, jamais poderia esperar que seria ali mesmo, em cima da mesa, que ele me daria o melhor presente de Natal de minha vida.

Adrienne Myrtes, pernambucana, editora do site www.cronopius.com.br, publicou “A mulher e o cavalo e outros contos” (Ed. Alaúde, 2006). adriennemyrtes@hotmail.com
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SEU OSÓRIO, CONSELHEIRO
Quinta-feira, oito horas da manhã. Seu Osório, naquela disciplina que só os velha-guarda têm, deu o tapa de todos os dias no balcão, e o Zezinho, naquela presteza que só os garçons de Nova Russas têm, pôs, em segundos, o sagrado café pingado e a canoa encharcada de manteiga diante do velho que, agradecendo como de costume, arrotou altíssimo enquanto mexia o café com leite com metade do pão francês, fazendo o papel de colherzinha. Ficou olhando pra dentro daquele copo americano, o líquido gorduroso, tascou a primeira mordida no pão encharcado e diante do inevitável e grosso pingo
que sujou a camisa, soltou:
- Pôta! - e arrotou de novo em seguida.
- Que foi, seu Osório?
O velho virou-se e viu o menino sentado à mesa.
Virou-se em direção ao balcão, de volta, e perguntou ao Zezinho, de boca cheia:
- Quem é?
- Filho do doutor Tiago, novo vizinho da Graça, sua santa filha... - e esboçou um sorriso de canto de boca.
- Tá rindo do quê, fidaputa?
Nada não... Nada não...
Tornou a pousar os olhos sobre o menino.
- Como é teu nome?
- Sérgio.
- E como é que tu sabe meu nome, putão?
- Quem não conhece o senhor aqui?
O velho Osório gostou do que lhe soou como deferência. Fez um sinal pro menino, como que anunciando que ia se sentar à mesa.
- Senta aí, seu Osório...
O velho sentou-se, pousando o copo e o pratinho com a outra metade da canoa.
- Quantos anos você tem, moleque?
- Dezesseis.
- Tá indo pro colégio, garoto? - disse de boca cheia apontando pros livros diante do menino.
- Tô não, seu Osório... Tô na fossa...
Seu Osório soltou uma gargalhada acompanhada de um tabefe na pilha de livros do garoto. E disse, virando-se pro Zezinho:
- Veja isso, Zezinho! Dezesseis anos e na fossa! Traz uma cerveja pro menino!
- Quer, Serginho? - perguntou o Zezinho.
- Eu disse traz uma cerveja, pôta!
O menino parecia encantado diante do mais comentado personagem daquela bucólica rua do bairro de Vila Isabel.
Zezinho pousou a garrafa diante dos dois, recolheu o prato e o copo com o café da manhã do velho Osório, e, quando foi servir a cerveja, o comandante do pedaço esbravejou:
- Eu sirvo, fidaputa! Obrigado!
Serviu o menino primeiro, depois a si mesmo. Serginho esperava o primeiro gole do seu Osório, para quem olhava - era nítido - como a um ídolo, quando o velho, numa única talagada, secou o copo. Imitou-o. Osório serviu-os novamente, passou a mão na cabeça do garoto - era dado a esses arroubos de carinho com os mais novos - e disse:
- Desembucha! Na fossa por quê?
- Ah...
- Conta. Confia em mim. Desembucha!
- Ontem fui apresentado a uma menina que mora ali na Dona Maria... Na vila, sabe?
Prima mais velha de um colega meu de colégio... Uns vinte e cinco anos, eu acho... Que linda, seu Osório! Que linda! E mora no Méier... sozinha! Parece que estuda na Gama Filho...
- Sei... Zezinho... Mais uma!
Linda, seu Osório... Linda... Pensei nela a noite inteira...
O velho, não escondendo a excitação, vivendo as emoções do menino que há muito deixara de ser, com o copo emborcado, disse:
- E aí? E aí?
- E aí que eu tenho namorada, seu Osório. Gosto dela. Acho que sou apaixonado. E sou fiel. Daí meu drama...
O velho então transtornou-se. Soltou um arroto de fazer o garoto virar o rosto. Levantou-se. Pediu uma outra garrafa ao Zezinho. Deixou cair um ou dois livros no chão. Tomou a garrafa das mãos do Zezinho, puxou a cadeira, repetindo um gesto seu já clássico, e o menino de olhos arregaladíssimos atento a cada movimento do seu Osório.
Disse o velho:
- Zezinho... Segura a cadeira aí... Vou subir, vou subir!
Vinha chegando o Bule, que gritou:
- Mas já? - e gargalhou.
Seu Osório já subindo na cadeira:
- E tem hora pra isso, ô, balofo?! Vou discursar! Vou discursar!
- O que é que houve, seu Osório? - disse o Bule cumprimentando o menino com a cabeça.
- É o seguinte, meus amigos... Silêncio, porra! Silêncio! - e esse pedido de silêncio era meramente feito por hábito, já que Serginho, Zezinho e Bule estavam rigorosamente mudos diante daquela cena inédita àquela altura da manhã.
Ajeitou os óculos e cravou o indicador em direção ao Serginho, de olhos brilhantes e vidrados.
- Deveria ser vedado a um menino de sua idade apaixonar-se! Deveria ser proibido o direito à fidelidade!!!!! Mais grave! Mais grave! Deveria ser obrigação o descompromisso! Deveria ser imperativo o viver à disposição das moças em flor, porra!
Uma lágrima corria dos olhos do velho Osório.
- Tá chorando, meu velho? - provocou Bule, cutucando Zezinho.
- Não, ô, babaca! Tô mijando pelo olho!
Serginho riu.
Prosseguiu:
- Isso, menino! Sorria! Sorria e coma as moças que te chegam! Sorria e desfaça esse namorico! Tenha vinte e cinco, trinta anos, e aí sim tu amarra teu burro nas coxas de uma mulher! Agora, não! Agora, não! Ou te arrependerás amargamente! Ouviu, putão? Ouviu?
Serginho fez que sim.
- Dá a mão aqui, porra! Ajuda! - disse em direção ao Zezinho.
Desceu, abraçou-se ao menino - que também chorava - e pediu mais uma garrafa.
- Ihhhhh... O menino também tá chorando, ó só! - era o Bule de novo.
- Tô mijando pelo olho também, seu Bule!
Seu Osório, tal como fizera com o Vidal há alguns anos, adotara o garoto. Selaram, ali, uma relação de amizade de infância.

Eduardo Goldenberg, carioca, autor de “Meu Lar é o Botequim! Histórias, Palpites e Feitiços sem Fim” (crônicas, Ed. Casa Jorge, 2006)

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