MAIS UM


Faz as malas e vem embora, querido dos olhos brilhantes. Não temos o que temer, os prédios e o asfalto não vão contra nós. A gente faz a felicidade a dois ser pra sempre até que nunca acabe. Eu só quero um pouco de você todo dia, o dia inteiro. Quero pensar em você sem motivo. Quero lembrar do carinho de ontem a noite como quem lembra do recado dado.

Faz a janta e senta na janela, meu amor. Eu quero um pouco de você em cima da pia mesmo que tudo se quebre. Sua mão no meu cabelo. As minhas mãos perdidas das tuas costas, rasgando. Vou tomar todo o seu cheiro pra mim pra poder fechar os olhos durante o dia dentro do carro e lembrar de você sem conseguir esquecer. Quero ficar satisfeita de você.

Deita na cama e me conta um segredo, meu bem. Conta ao meu corpo tudo que você nunca disse. E depois esquece. Fecha os olhos e me deixa cuidar do teu sono, dos teus olhos, enquanto faço as malas e vou embora.

Muriel Goldoni, publicitária, talvez escritora um dia. Mais em
murielgoldoni.blogspot.com

DUAS NOTAS

  • Faz tempo que estamos para falar aqui do Histórias Possíveis. É uma revista literária virtual de periodicidade semanal, na qual publicam diversos autores contemporâneos. E já está na quarta edição. Veja que belo time de ficcionistas:
    ANDRÉ DE LEONES - DANIELA DOS SANTOS - DANIELA MENDES - DHEYNE DE SOUZA - HENRIQUE RODRIGUES - LEANDRO RESENDE - LÚCIA BETTENCOURT - MAIRA PARULA - MARCELO MOUTINHO - MARCO AURÉLIO CREMASCO - MAURÍCIO MELO JÚNIOR - NEREU AFONSO DA SILVA - PRISCA AGUSTONI - ROBERTO AMARAL - RONIZE ALINE - SUSANA FUENTES - WESLEY PERES.
    Para saber mais escreva para
    historiaspossiveis@gmail.com. Ou se chegue por aqui.
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  • E também do belo trabalho que está fazendo o Marcelinho Spalding e companhia. Marcelinho está propondo uma grande parceria com os artistas gaúchos. Olhe, confira!

DUAS VOZES

Com o objetivo de divulgar e debater a produção musical e literária brasileira contemporânea a livraria Nova Roma, em parceria com o jornal Vaia, promove, mensalmente, o encontro de dois artistas (um músico/compositor e um escritor) para conversa, leituras de textos literários e pocket show.
O programa cultural Duas vozes – música e literatura pretende criar um espaço eclético para discussão de idéias, de todos os gêneros, grupos sociais e artísticos, tendo como linguagens a música e a literatura, além de tornar possível discutir e informar, colocando o público em contato direto com os artistas convidados para uma conversa descontraída e informal.
O evento tem duração de aproximadamente uma hora e meia e está dividido em três etapas: comentários sobre a obra dos convidados e breve entrevista; leituras e comentários dos artistas sobre seus trabalhos e participação do público e pocket show com o músico/compositor convidado.
No primeiro encontro – ocorrido em 29/09 - participaram o poeta e jornalista Nei Duclós e o escritor, compositor e músico Cláudio Levitan.
Na segunda edição - dia 27/10, sábado, às 1730hs – os convidados foram a cantora e compositora Monica Tomasi e o escritor e jornalista Luiz Horácio.
Em dezembro – dia 01/12, às 18hs – participaram do evento o músico e compositor Nelson Coelho de Castro e o escritor Luis Augusto Fischer.
A quarta edição do evento – marcada para o dia 15/12, sábado, às 18hs - terá como convidados o violonista e compositor Felipe Azevedo e o poeta Marco de Menezes.
A livraria Nova Roma está localizada na rua Gen.Câmara, 394 (telefone 30134535). A entrada é grátis.

Conto de Pedro Salgueiro




Fronteira



O VASTO HORIZONTE MIRADO COM ANGÚSTIA: PRIMEIRO as sobrancelhas cerradas, a mão em pala; depois os óculos claros, vislumbrando ínfimos detalhes; mais além o binóculo rápido; e por fim a luneta de tripé apoiada no peitoril da janela. (A porta da frente travada, os galhos ressequidos sobre o muro.)
Em cima da mesa, o antigo manual de técnicas de fuga, de caminhos alternativos, de atalhos perfeitos. Aos seus pés a gasta bússola, mapas encardidos e rabiscados nos trópicos. A xícara de café esquecida; a bagana de cigarro inútil nas cinzas. (Quanto mais longe... — o país distante, um mundo imaginário, paisagens de televisão.)
Os olhos peritos não enxergam mais os pés sujos, as unhas compridas, o filete de baba maculando o colarinho, as baratas no canto escuro do quarto. No quintal o verde úmido dos musgos, o tronco seco da goiabeira, os cacos de telhas trocadas no último inverno.
Rangendo leve, a cadeira de balanço da companheira triste, também esquecida dos filhos distantes, a esperar eternamente pelo retorno das andorinhas, o cantar dos galos nos quintais vizinhos, rezando uma prece em silêncio, no mais absoluto silêncio...
Por último, cavou trincheiras no jardim e montou observatório no galho mais alto da ingazeira do quintal. Canto algum ficou descoberto de um possível ataque. Testou todos os alarmes, checou lunetas e binóculos, lustrou a velha espingarda. E nem se deu conta de que o adversário, zeloso de seus cuidados, se infiltrara há muito em sua guarda, já organizava junto com ele as mil situações de defesa, sussurrando em seu ouvido opiniões absurdas, desfocando lentes, cuspindo debochado no assoalho da sala enquanto ganhava a confiança de sua companhia. (Se não olhasse para tão longe já o teria visto, de sorriso maroto, destampando as panelas no fogão.)

--- Pedro Salgueiro nasceu no Ceará (Tamboril, 1964). Publicou O Peso do Morto (1995), O Espantalho (1996), Brincar com Armas (2000), Dos Valores do Inimigo (2005) e Inimigos (2007), de contos; além de Fortaleza Voadora (2007), de crônicas. Recebeu o “Prêmio de Contos da Biblioteca Nacional para obras em curso” e o “Prêmio da União Latina/Concurso Guimarães Rosa de Literatura”, dentre outros. Tem contos em suplementos literários, sites na internet, revistas e antologias (Geração 90, Os Menores Contos Brasileiros do Século, Quartas Histórias, etc.). Algumas faculdades (História, Pedagogia e Agronomia), diversos prêmios literários, um emprego público vitalício e outras inutilidades afins. Dentre várias atividades: desbravador de abismos, perquiridor de caminhos e descobridor de atalhos.
Conto do livro Inimigos (Rio de Janeiro: Ed. 7Letras, 2007).

EXTRA, EXTRA, EXTRA!

Aldir Blanc está de volta. Agora na blogosfera. Entre!

ENTREVISTA COM MARCUS MINUZZI


“Nosso lado maloqueiro nos redime”



Marcus, vamos começar falando sobre a tua trajetória de poeta até aqui. Tem livro (s) publicado (s) ou pronto pra ser publicado (s)? Publicou onde teus poemas, revistas, jornais, concursos, internet?
Tenho um livro prontamente organizado, total, totalizado, escrito de um fôlego só, ainda não publicado, não sei bem porque, não sei se não corro atrás direito duma editora, se se pega esse negócio à unha, ou se é porque não tenho dinheiro para pagar uma edição, dessas, que vendem pra poeta novato. É um livro que veio até mim navegando, intitulado “Vosso Gozo: o beijo de moça governará o povo”, e de já falar muito nele, como inédito, venho ficando até enjoado. É preciso criar algo novo. Depois desse livro, que escrevi entre janeiro e março de 2007, são 59 poemas, viu, como dobres de sinos, me converti no que chamei de “Poeta Arteiro”, uma versão manhosa e arteira, de criança para criança, do próprio vosso gozo. Tentei fazer algumas apresentações na cidade onde moro atualmente, Novo Hamburgo, em escolas, mas é duro o caminho das pedras. O poeta só gozando que não morre. Meu poeta arteiro é um negro louco, que faz que não é louco, caso contrário as crianças ficariam assustadas. Até hoje, em uma das poucas escolas que me apresentei, sei que as crianças permanecem cantando um hit que inventei, numa sacada de pandeiro, pandeiro-pandeirinho, básico, e que fala assim: “O poeta alimenta o boi, pa-ra-ra-pum-poi, pa-ra-ra-pum-poi”. Quanto mais vale: vintém ou sorriso de criança? Também faço um nordestino louco, com chapéu de lixo e tranças ouvintes, uma coisa que eu criei, pra público adulto, que é pra assustar mesmo. Eu sou esse boi vadio. Mas não tenho tido como aparecer em Porto Alegre, já que são sete reais o total dos meus custos com transporte desde Novo Hamburgo, e não consigo muito esse dinheiro todo dia. Esse nordestino é matreiro, ainda está nascendo dentro de mim. Sou eu o livro dele. Antes disso tudo, escrevi um monte de coisas desde que estive em Portugal e criei um umbral, meu blogue, chamado “A Luz do Abacate”. Ali, conheci o martírio pessoano. Ser um louco-Pessoa pode vir sendo o meu sonho. Algo tipo índio-caboclo, sem pés-nem-mãos, ou melhor, os pés e mãos mexendo tempo o todo, de modo que as crianças lá em casa olhem pra mim e fiquem dizendo: o paêndoidô, o paêndoidô. Uma vida, duas graças. Na luz do abacate, tenho “O Rosa do Abacate”, meu primeiro livro parido a partir do recorte preciso lisboano. Uma vaca me pariu. Apresentei no Fumproarte, pra financiar a publicação, deu errado. Levei três pareceres contra – nos óio. Mesmo assim, venho andando ereto. Por fim, cumpriria avisar o leitor que esta resposta aqui foi redigida direto no computador, onde quem baixa é um santo meio eletro-desengonçado, sempre matreiro, é claro. Quase todo o restante da entrevista foi respondida na ponta da caneta. E tinta fina é outra coisa. Cê perceberá a diferença. Algo incrível. Ou não.

Ser poeta é mais talento ou esforço? Descobriu-se ou inventou-se poeta?
O poeta autêntico escreve com o próprio sangue. O poeta crucificado é uma imagem que me atrai. A morte gera a poesia boa. O poeta anda nu e aceita as pedras que lhe são atiradas. A poesia, da maneira como a entendo, é algo muito grave e fundo. No começo está o poeta, no habitat original, onde dor e prazer se fundem. Por isso, não há ópio que salve o poeta. Além do Cristo, trato sem meias palavras do negro brasileiro em meus textos. O sacrifício precisa ser transformado em mito. Falo num poema:
“Negro escuro-queimado, fogo de labareda. (...) Fostes crucificado,/ nego escuro do mato.”
O poeta é negro no sentido oleoso da negritude. Óleo combustível gerador de energia e também lubrificante. O coito padeceu por séculos da interdição católica. No Brasil, o combustível negro permite ócio e sexo farto ao branco. O coito torna-se algo possível de se fazer sem culpa, já que os negros eram considerados sem alma. Sem saber, o branco torna-se cativo dessa brandura. O povo nasce em meio ao gozo e cultiva então a alegria como característica nacional. O poeta, apesar de ter consciência plena da morte, precisa ser capaz de gozar do mesmo modo que esse modelo de brasileiro sem culpa. O amor acende o coração do poeta. O andrajo é função do poeta, o rumo ancestral convoca o poeta à navegação abissal. Amar o perigo disso tudo reflete o inconsciente mítico. Nada é puramente dado pronto, natural. E nada é puramente inventado, criação humana. A humanidade descobre em si o poético, ao mesmo tempo em que consegue infinitamente recriá-lo. O país homérico é ao mesmo tempo uma descoberta e uma potência de recriação. Descobri-me brasileiro e o Brasil desdobra-se em inúmeras possibilidades.

Quais livros (poesia e/ou prosa) fizeram parte da tua formação?
Não leio muito, porque leio pouco, ou melhor, leio pouco porque sou boi lento, vagaroso. Acho que Mensagem (Fernando Pessoa); Grande Sertão : Veredas (Guimarães Rosa), que ainda não terminei de ler; O Jogo da Amarelinha (Julio Cortazar).


Teve/tem algum incentivador? Quem?
A ausência de meus pais, talvez, numa espécie de incentivo negativo.

Com o que te inspiras para escrever? O que é matéria para a tua poesia?
Inspiro-me com a fome e o desejo, que trilham o caminho de fuga da morte. Paradoxalmente, o medo libera instintos sígnicos poderosos. A necessidade é o grande mote da criação. O negro presente em meus poemas pode ser visto assim: o rei homérico ancestral reduzindo à penúria da escravidão. O erro é outra matéria-prima essencial. O erro matrimonial entre homem e mulher. O medo de amar contém a razão deste erro básico. O sonho inventa o real. O sono seria a chave para novas núpcias. O céu mitológico brasileiro, com seu reino de possibilidades sonoras, contém poemas já prontos, mas que urgem ser montados. O meu sonho é com amas do lavro e da curra, que exploram o poeta como a um escravo. Há um dicionário ardente prevendo a des-ferocização do masculino. A linguagem é o local do nascimento de anjos-menino, como Diadorim, em João Guimarães Rosa.


Costuma começar pelo primeiro ou pelo último verso? Qual deles é o mais difícil? O que detona o poema?
O amor anoitecido. Há sempre um orgasmo sonoro, fruto desse amor, que dorme e sonha. O poema é resultado de um noivado em ondas de guerras aventureiras. Escrever nos prospecta em uma fundura ancestral. Muitas vezes, o poema é o arco fundante nos atirando em direção ao futuro. O mito ovariano vem sendo meu principal poema. O guerrear sertanejo, de mulheres-musa, é que ergue este mito, como a uma tenda no deserto. Amos de livros: é isto o que os poetas são. Cavam feito condenados.


Há idéias ou imagens que te perseguem, que ficam grudadas no teu juízo algum tempo?
Leio o negro atávico, aborígine homérico. O leito de um rio rumoroso é que me recolhe, tornando-me um navegador. Na verdade, o negro é o próprio rio. Sou possuído por essa intenção benfazeja de negrificar o mundo. Outra imagem permanente é o maio transcendente, o gosto querido de um curral materno, perpetrado por um mito celestial novo: a Negra Ama Jesus – figura que corrói docemente o princípio feroz da masculina curra.


Qual é a tua relação com a cidade onde mora, porto alegre? No que isso influencia a tua poética e se manifesta no que tu escreves?
Nasci em Porto Alegre, moro atualmente em Novo Hamburgo. Amo Porto Alegre, cidade de navegação mítica peculiar. Nei Lisboa toldou meu lirismo – o melhor cantor-poeta da cidade. Toda cidade canta-se. Preocupam-me os espelhos. O norte espera do Rio Grande do Sul o mito do bravo defensor fronteiriço. Aqui, não é possível ser fraco. O negro aqui alia sua brandura à fera antiga, do divisor entre Espanha e Portugal. A coroa representada pelo português falado no Rio Grande do Sul acende uma literatura rica em mitos. Porto Alegre acode o coroamento lingüístico de todo o Estado. No meu livro, “Vosso gozo: o beijo de moça governará o povo”, procuro ouvir o murmúrio desejante do povo escuro e discriminado pelo porvir. O barco da cidade é conduzido pelo sacrifício negro, matizado pelo gaúcho pobre, a china pobre e neguinha. O baixo meretrício da cidade é revelador de seu povo. O gato negro, bandido, aqui dá origem a bandas de blues.


Como define a tua poesia? Como caracterizaria tuas principais ambições estéticas?
O negro arde miraculoso. Ouço o sono. A senda conhece o sono. O lampo artístico, a luz que conhece, na concha quente de um orgasmo. Sou, nessas horas, um orgasmo. O seio ardente é inspirador de quadros e bibliotecas. Sexo é a base do onirismo humano e, portanto, do poeta. A serpente vista nos olhos. O maio é o mês da nupcialidade, que no Brasil torna-se uma nupcialidade violenta, mas brejeira. O branco curra índias e negras, cativo desta sensualidade. O Brasil é o poema resultante desta situação. O que busco esteticamente é adoçar os sobrados. As donzelas ficarão negras e assim prenderão seus maridos em casa. Eu orno, ao mesmo tempo, a nossa boca do lixo.


Tu identificas uma geração literária hoje, ou um grupo de poetas brasileiros com projeto comum definido? E tu te vês fazendo parte de alguma geração literária?
Escrevo num poema:
O maio anuncia o comprido arco/ sob o qual cruzam as poetisas
Há negros em toda literatura brasileira, num sentido amplo. A negra aparece menos escrevendo e mais sendo escrita. O gesto moleque de Caetano Veloso, ao perguntar “eu sou neguinha?” é revelador do uso da negra, no Brasil, pelos brancos. A neguinha brinca com o rapaz branco e nunca dele se torna cativo. A música brasileira é obra de homens e brancos, cativos da negra. Faço este corte transgeracional. A pata do baiano é mista, no entanto. É húmus atávico. Caetano é o maior divisor de águas entre um Brasil macho, cantador e viril, e outro, mais consciente da importância da sua própria feminilidade. O maio representa o noivo menos mal-educado. Entendo-me como desta geração.

Recebeu ou recebe conselhos importantes de escritores na tua trajetória? Como foi e é o diálogo com outros escritores, da tua e de outras gerações?
“O Mario Pirata é meu sonho”, certa vez escrevi. O Mario também é transgeracional. Conversei com ele uma única vez, como quem ouve conselhos. É dura a vida do poeta navegador. A guerra mítica é ancestral e poderosa. Os poetas sonham em receber o coroamento, seja o de um beijo ardoroso, vindo do público, seja o de um abraço fraterno entre pares. A musa não esconde-se, nem foge; quem a procura, acha. O poeta se faz sozinho, como exigência da própria musa. A humildade absoluta não existe. O passado nos vincula. O meu amigo Sidnei Schneider, poeta dos lindos, me felicitou com uma ótima crítica dos meus poemas em seu blogue. Sou seu amigo porque a crítica é boa ou a crítica foi boa porque sou seu amigo? A arte é o mito querendo avançar em suas funções reprodutivas. A arte é uma frente de batalha. Poetas bem-educados cumprimentam-se antes de começarem a sempre bondosa luta pelo amor à Deusa, que no fundo quer bem igual a todos. Ouvi de Mario Pirata o profético conselho de que o artista precisa recuperar a inocência perdida na infância. O “brincadeiro” é uma feliz idéia de Mario, que eu próprio venho tentando recriar, juntando-a ao mito da Negra. Mario é o que mais baliza meu sonho de viver como poeta nesta Porto Alegre pouco infiltrada por uma ludicidade que tem seu porto seguro no Nordeste brasileiro. Tomei-o como referência e acredito ter pedido licença para tanto.

Quanto tempo dedica à leitura de crítica literária? Concorda com a idéia de que ela, nos jornais e revistas, está mais digestivo-introdutória do que analítico-crítica? E a crítica literária pode influenciar a produção poética de uma geração?
O ciúme é a raiz da crítica, mitologicamente falando. Ele, o ciúme, margeia tudo. Há anos que não leio crítica. O crítico que não compreende esta natureza da crítica castra novos talentos. O crítico competente alia paixão e sinceridade em torno de si. Estes cativam, mesmo destruindo.

Muitos poetas hoje apresentam uma versatilidade acadêmica. Eles falam várias línguas, traduzem, fazem ensaios, críticas, resenhas, estudam várias disciplinas. O poeta precisa ser um erudito? Poesia só se faz com muito estudo?
A poesia é auto-suficiente. O corpo como base do signo alimenta-se da realidade externa da qual faz parte a cultura letrada, como herança forjada a ferro, no caso do chamado cânone ocidental. A guerra acontece aliançada com a inocência. O arcabouço teórico aumenta a ferocidade inerente à celebração das arcadas às quais pertencemos. A escuridão de não pertencer aumenta mais ainda este aguerrimento. Sou um titulado na academia (doutor em Ciências da Comunicação). Acho bom isso. Me dá orgulho e esperança. Mas sou cozido em panela de barro. Óleo gostoso banha meu lombo. Fogo brando. A vergonha de querer a mãe eu perdi. O negro amalucado que posso ser me dá o domínio do charco. O ovariano é um chão cansado de sofrimento. Todo cânone ocidental é fálico. O cânone do preto obscuro é se dar mal. O negro merece ser estudado. Mais do que isso, ele precisa ensinar o Brasil a formular seu próprio cânone.


Como leitor de poesia o que tu achas que de mais importante um poeta tem que expressar em sua poesia?
A criança inocente e a nudez original.

Qual a relação entre a poesia e técnica? Basta dominar certas técnicas para ser poeta?
O fogo da luta forja a técnica. Olho meu olho poético aureolado. O mito é um cipoal pedregoso. O sertanejo tem uma pedra na fala, segundo João Cabral de Melo Neto. O sacrifício pessoano rendeu-nos o monumento de tudo o que ele, Fernando Pessoa, e seus heterônimos, escreveram. A alma é boa, apesar das penas. Álvaro de Campos, no “Opiário”, proclama: “basta de comédias na minh’alma!”. O sertão é o nosso mar. O gozo brasileiro é o maior recurso técnico a ser engendrado. O malho da palavra é, nas palavras de Caetano, “prensa, esperança, sofrer prazeria, promessa, poesia, Mabel”. A promessa nossa de poesia é a Negra, enquanto mito. Menos dor, mais prazer. O gozo na dor abre o poeta recluso de cada um, que, justamente por ser poeta, sabe recriar os artifícios simbólicos que usamos desde Homero.


A poesia tem prestígio no âmbito da nossa cultura?
Ser poeta é nobre. A nobreza se recria em nosso tempo, mantendo um traço imemorial: o ouro brilha mais em meio ao lixo. Divino é o palhaço; quanto mais ingênuo, melhor. Divina é a televisão brasileira; quanto mais aberta, média e “burra”, melhor. Divino é o desdentado do último grotão sertanejo. O nosso lado maloqueiro nos redime. Os olhos de boi de Guimarães Rosa sabem entronizar a jagunçada. Não há cultura sem poesia – este é o ponto – porque é a poesia que faz a cultura. Coser lábios de rã é calar o brejo e erguer principados. A luz do pirilampo, no brejo, acende o arco da travessia. Hoje, ser rei é muito mais fácil, justamente devido à dessacralização dos mandatos. Ser plebeu é que é nobre.


Qual a função social da poesia?
A poesia sonha a nós todos.


Qual a melhor editora brasileira? E qual a que edita melhor a poesia?
Olha, um tanto desaforadamente: a melhor será a que publicar primeiro o meu livro “Vosso gozo: o beijo de moça governará o povo”. As outras todas são péssimas.


Já participou ou pensa em participar de oficina de poesia? Como ela foi/será?
Nunca participei. Tenho o lombo sovado. Talvez nunca mais me matricule em escola alguma (levei um pau no doutorado, estou atarrachado até agora). Talvez me matricule só nas escolas imemoriais, que virtualmente não existem, mas que são percebidas em conchas obscuras, como no fundo do âmbito de um cocô de vaca. Não é uma piada. O estrume guarda segredos.


Alguma epígrafe que te acompanha sempre?
Acho que sou muito auto-centrado pra andar usando epígrafes. Nunca fiz isso. Eu diria um verso meu, pra quem quiser usar de epígrafe, ou ímã de geladeira: “Seja uma negra do ócio”. Nisso, existem umas duas ou três variações, como: “Seja uma ama do lavro”; ou: “Descubra o que é ser um negro da bosta”. Não. Acho que esta última destoa um pouco, pelo menos do meu espírito. Eu não a usaria. Mas é uma frase boa de ser dita.


O que pensa sobre o jornal Vaia?
Fica estranha esta pergunta vir logo depois de eu falar em “bosta”. Uma espécie de oásis é o Vaia. O fato de existir o Vaia está me viabilizando como poeta. “Cê (Vaia) parece um anjo, só que não tem asas iaiá.” Cito Maskavo, uma coisa mais pop, pra misturar bem as coisas. O arco é orientado sempre na direção certa. O poema sempre será bom.


Repito uma pergunta que a Clarice Lispector sempre fazia aos seus entrevistados: o que é mais importante na vida pra ti?
O gozo eterno, a boa morte.

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Dois poemas de Marcus Minuzzi


Homenagem a Chico Buarque das Sereias de Holanda


Com três pedras na mão, morto de inveja, me atrevi a perguntar a um oráculo que tenho porque Chico Buarque de Holanda é imortal. Minha pressuposição acerca dessa imortalidade refletia a idéia de que Chico encontra-se largamente embutido no imaginário coletivo, especialmente o das mulheres. Chico é um pai? Minha hipótese é de que Chico recorta e traz, com mãos de poeta, a violência dos tempos, que se abate com maior contundência – ninguém há de duvidar disso – sobre as mulheres. Ouvi Renata Maria, do último disco, e estarreci-me. Onde está o poeta Chico? Ele ainda vê sereias no Rio de Janeiro – proposta de paz. Creio que aquele oráculo me apontou algo que não sabemos. Que uma breve brisa sopra de um antigo cais (referência: Ode Marítima, Fernando Pessoa). Ali, os homens estão, e é contra o vento. Ontem, morri ao saber desse segredo.


Quando nasci,

Um anjo torto

Desses, etcétera.


Recebi teu beijo.

Depois, vieram procurar-me:


- Marcus, queres ser o rei dos másculos?


Tudo é divino e oculto.

Vieram ter segredos.

Ócio interpretativo.

Botei óculos.

O segredo da arte está nos beijos que recebes.

Os tormentos.

Há belos tormentos pictografados.

A arte, elementos do cérebro.

Eu nasci amaldiçoado, com o cu nas calças.

Danação.

Fico cá, esperando as mulheres, anjos em pele de leão.

Vaginas lavam o teu anseio.

Ficar esperando.

Quando eu nasci, um anjo desses torto,

E eu disse:


- É foda, Carlos.


Ângelos galhados,

Com açoites

E os pintos, pictógrafos.

A mulher me bate, com o seu anseio,

Ali onde esconde-se um pai.

Eu gosto de sexo asseado.

Asseio: a perfeita acareação.

Ouço nossos sambas, reis, novelas.

O Brasil é uma estrela lusitana, a mais bela, portentosa.

De cinco mulheres que eu conheço,

15 revelam seus segredos,

Destrambelham seus canonosos pais,

Colocam-se diante da pia,

Põe-se a lavar ovos,

Quando Chico canta,

Um pouco sujo,

Mesmo perneta.

Supremus.

Supremus.

Chico Buarque de Holanda.

Algumas coisas se fizeram aqui neste quintal,

Ao som de seu magnífico atabaque.

A mulher é sangue.

Tenho vergonha das minhas pernas.

Estrangeiro, sou um estrangeiro num país de pernas pretas

E escolas de samba.

A mulher diz:


- Amo Chico Buarque.


Ela não sabe que ao amar Chico,

Ama uma indecência.

A escravatura brasileira escrita

Sobre a base de um rito de escrever as negras.

Nossa cultura.

Grandes florestas da Ameríndia.

A coroação portuguesa.

A América escrita em espanhol.

Um sotaque de autoridade.

A intensa vaidade.

O que

é Chico Buarque?

Uma negra comida por trás:


- A indecência nacional transmutada em beleza.


A glória, as glórias nunca serão estanques.

O ponto crítico que é o Rio de Janeiro,

Esta estranha alegoria.

Buarque.

Pertenço aos de Holanda.

“Tanto horror e iniqüidade” e putaria.

Fria, a filha do senhor dono de negros

É fria.



- Hoje, a pátria tem bunda.


Morenas pias,

Saborosas,

Como frutas melequentas.

Estrela fria, te orienta.

Hoje, o sabor de alforria organiza o movimento.



- Brasil, eu amo tuas filhas!



Batismos de fogo e tristezas.

Meu padroeiro de braços abertos

Sobre o Rio de Janeiro.

Salvações crísticas.

Ninguém tem certeza com Maria.

O gado está bento.

Ave, a filha que o sol queimou,

Que me dá seus peitos.

Subcristianismo tropical.


- Queremos,

Porque queremos,

O charme,

O sossego

Desse Deus grego

De olhos vítreos.

Deus, salve as Marias

Todas filhas de Francisco.

Água nos olhos,

Sal na boca.

A escrita sônica.

As sereias.

A verde saudade

Por águas tão fundas.


***



A costa brasileira


Costa
Úmida.

No brejo,
Lambança
Na
Barriga.
Alho
Sobre
Grotas
Noivas
De
Aparecida.
O nível
Do
São Francisco
Onde
O grego
Entoou-se
Em boa
Ômega.
O remanso
Do
Gado,
A breguice
Sertaneja.
É
Negro
O
Corpo
D’água,
É birita
Esta
Bruta.
Ô cachaça
Em corpo
Desengonçado.
Ô gosto
Heróico.
A corja
Arriba
A saia
Da
Moça.
Ô fuligem
Atípica.
A costa
Brasileira
Balançou
Esparta.
Gerou
O Homero
Retinto.
Os sambas
Lembram
O nome
Certo
Das coisas,
Codinome
De
Corte
Condimentado,
Cabeça
Sonsa
Dourada.
Os
Anos
Evolucionais,
A senzala
Pura,
Os
Mantos
Gordurosos
De
Comida
E energia
Negras.

2 POEMAS DE AUGUSTO FRANKE BIER



DESPEDAÇADO

Não sei se sinto mais
A falta dela
Ou dos pedaços meus
Que ela carrega


ANDARILHO

Eu sou
Meu próprio caminho
Vou por aí
Sem GPS
O mapa é borrado
A bússola quebrada
O azimute errado
Ainda assim
Eu não consigo achar graça
Quando me dou por achado