2 contos


Flores em vida

“Sei que estou no último degrau da vida, meu amor”
Nelson Cavaquinho

A noite ainda discutia se ia ou não embora, mas os negociantes de frutas, legumes, peixes, frangos e bugigangas da feira da Glória já armavam as barracas, entre risadas e assovios, cantos de galo, restinho de neblina virando poeira em direção ao aterro. O homem de cabeça branca e violão no ombro escorregou pelas cordilheiras de paralelepípedos da Rua Hermenegildo de Barros e se deixou levar ladeira abaixo pela Cândido Mendes, até desembocar na Augusto Severo. Encostou o violão no poste e pegou uma talhada de melancia na barraca de Genaro, amigo desde a infância na Praça da Bandeira.
– Melancia a essa hora, meu velho?
– Combate a ressaca, Genaro.
– Sai dessa vida.
– Já tentei. Essa vida é que não quer sair de mim.
Os cabelos branquinhos, poeira da idade, estão meio desarrumados. Passa a mão e observa que também estão bastante engordurados, purpurinas da madrugada. Lembra de uma criatura a quem amou, que o chamava de cabelos de prata. Fartos e ondulados, reluziam diante do espelho, na luz esfumaçada do cabaré de bandidos do Largo do Estácio. Mas nem tudo que reluz é ouro e a criatura o trocou um dia por um moço requintado, de bigodinho desenhado e cabelos pretos, feito as asas da graúna, tratados na brilhantina Glostora.
– Me senti um palhaço, Genaro.
Se já não bebesse bastante, teria começado a beber naquele momento. Doses de angústia depois, fez um samba que dizia assim:
“Sei que é doloroso um palhaço
Se afastar do palco por alguém
Volta, que a platéia te reclama
Sei que choras, palhaço
Por alguém que não te ama...”
– Fiz? Fiz. E esse eu sei que não vendi a filho da puta nenhum.
A vendedora de flores também é amiga. Ela escolhe uma rosa, das mais rosas e mais bonitas, corta o talo e enfia no bolso do compositor. Troca de sorrisos e carinhos, vida que segue, apruma novamente o passo e pega o caminho que não é de casa.
Ia esquecendo o violão dormindo no poste, mas a florista o chama. Guarda a rosa na barriga do instrumento e toma o rumo da Lapa. Pouco depois está de prosa com o jovem jornalista metido a escritor que bebericava a última no pé sujo da Riachuelo, no fim de uma noitada de fechamento do jornal e das boates da Mem de Sá.
– Eu era muito jovem ainda, assim que nem você. Não tinha respeito pela vida. Nem tinha medo da morte. Foi antes de virar o disco, de virar a mesa, de virar polícia. Fui o pior soldado da história da polícia Militar do Rio de Janeiro. Comecei a vida na farda no Batalhão de Cavalaria da PM, onde fiquei sete anos. Metade em cima do cavalo, metade na prisão. Abandonava a diligência e o animal, picava a mula para o Morro de Mangueira. Jogar conversa fora e cerveja para dentro com Cartola, Carlos Cachaça, Geraldo Pereira, Zé Com Fome, Padeirinho. Para eles, eu fiz um samba assim:
“Quando eu piso em folhas secas
Caídas de uma mangueira
Penso na minha escola
E nos poetas da minha Estação Primeira
Nem sei quantas vezes subi o morro cantando...”
Fui o hóspede mais assíduo do xadrez do quartel da Rua Evaristo da Veiga. Mas era bom pegar cana, você sabia? Se não fosse o xadrez do batalhão, eu não teria feito muito samba de sucesso. Às vezes ficava um mês confinado. Então aproveitava a tranqüilidade para compor.
– Começou a vida?
– Maneira de dizer. Na verdade, antes de encarar o batalhão eu já havia enfrentado
outros batentes para ajudar no orçamento da família. Trabalhei em fábrica de tecidos, em Deodoro, na função de ajudante de tirador de resíduos, e como auxiliar de eletricista no centro da cidade. Meu pai era tocador de tuba da Banda da PM. Que coisa, hein?! Tocador de tuba.
– Ainda existe tocador de tuba?
– Não existe mais tuba. Nem tocador.
A prostituta de decote farto esparrama os peitos em seu ombro e beija sua testa, os lábios cheios de batom aplicado de qualquer jeito:
– Paga um conhaque, índio?
Nem espera pela resposta, sabe qual é. Pede o conhaque no balcão, entorna de uma vez e volta para a calçada.
– Conhece a moça?
– A moça me conhece.
Nem pegou o violão, apenas sussurrou, marcando com as pontas dos dedos na mesa:
“Não faça vontade a essa mulher
Não deixe ela fazer o que quer
Deve-se ter amizade
Mas não se deve dar liberdade...”
– Que história é essa de índio?
– Minha mãe era paraguaia, índia guarani. Olha os meus traços. Ainda consegue enxergar? Índia guerreira, que areou muita panela nas cozinhas dos outros, como empregada doméstica em casas de família. Acho que está na hora de ir dormir.
– Vai, poeta.
– Sou cantador. Poeta é o Guilherme.
– Então canta uma das suas com ele. Pode ser “Flores em Vida”?
– Só se você prometer que não pede mais nenhuma.
– Prometo. Mas dessa vez, com o violão.
Além dos bares, sapatarias, papelarias e lanchonetes começavam a abrir as portas. A mesa já recebera outros notívagos e alguns madrugadores (diúvagos?) para ouvir o índio:
“Sei que amanhã quando eu morrer
Os meus amigos vão dizer
Que eu tinha um bom coração
Alguns até irão chorar ...”
Pára, enjoado e cansado. Toma ar, toma mais um gole e canta mais uns versos:
“Por isso é que eu penso assim:
Se alguém quiser fazer por mim
Que faça agora...”
– Flores em Vida. Essa é uma obra-prima.
– Bobagem. Obra-prima é aquela morena ali.
Pouco depois desce a 21 de Abril, de braços dados com a morena obra-prima, na direção da Central do Brasil.
Mas o caminho é longo, e pode ser feito via Praça Tiradentes. Curtos são os degraus da vida. Outros bares, novos amigos, tantas lembranças. Os trocados mastigados no bolso da calça, junto com o maço de cigarros, estão guardados para o ônibus que vai finalizar o trajeto até em casa, quando as pernas pedirem clemência.
É quase meio-dia e alguém sugere uma rabada, com polenta e agrião, numa pensão da Rua Barão de São Félix. Dessas que permitem violão e cantoria nas mesas. A obra-prima das madrugadas na Rua Riachuelo carrega o instrumento, com a promessa de um amor vespertino no hotelzinho da Rua do Livramento. Ela está sorridente. Ele continua hospedando a tristeza que parece não ter cura. Recorre aos versos do parceiro Guilherme, para casar com sua melodia cheia de flechas sorrateiras:
Tire o seu sorriso do caminho
Que eu quero passar com a minha dor
Hoje pra você eu sou espinho
Espinho não machuca a flor
Eu sou errei quando juntei minha alma à sua...”
Amigo tem mania de pedir música, por mais que o artista esteja indisposto. Começa o falatório: “Canta aquela que diz vou abrir a porta para você só porque é dia das mães”. “Não, não, aquela que fala fui bom pra ela, dei meu nome a ela sem saber que estava sendo traído”. A obra-prima tem bom um humor:
– Vocês só gostam de música de corno?
O índio velho tem a visão nublada e a memória bastante combalida. Mas no meio da noite ainda lembrava que o resto da tarde foi nos braços dela. Só não lembrava quando nem como chegou em casa, o que não tinha muita importância. A mulher de fé e paciência, companheira das horas difíceis, fez beicinho por conta do longo sumiço. Mas mesmo assim, ao sair para trabalhar, deixou café coado sobre o fogão e um prato de carne assada com batatas dentro do forno. Ao retornar, no fim do dia, o encontrou ainda na cama, estirado, ao lado do violão. A flor atirada sobre travesseiro, também sem vida.
Botou no velho toca disco um 78 rotações, meio arranhado, com um samba-canção dos mais antigos:
“Quando eu morrer, deixarei minha fama
Deixarei no mundo quem me ama
As lágrimas que rolam em meu rosto
Não sabem dizer qual é o meu desgosto...”
Que diabo de desgosto era esse? A companheira nunca soube. Pena que ele não estivesse mais ali, talvez pudesse contar para ela.
***
Dedicada à memória de Nelson Antônio da Silva, o Nelson Cavaquinho (1910-1986). As canções citadas são todas de sua autoria.
Publicado na antologia Contos para ler ouvindo música, organizada por Miguel Sanches Neto (Editora Record, 2005).
Luis Pimentel, baiano, jornalista e escritor, publicou “Com esses eu vou: de A a Z, crônicas e perfis da MPB” (Ed. Zit, 2006)
------------------------------------------------------------------------------------

Silêncio Branco

Tirei o telefone do gancho e disquei aquele número. Eu sabia que era a última chance. Há um ano evitava qualquer contato, apesar de minha insistência. Quero te poupar este desgosto - me escreveu num bilhete, única notícia em todos estes meses de solidão e desespero, enquanto minhas cartas, longas e confusas, atestavam a dor que era, para mim, aquela separação. Mas agora eu tinha o telefone da casa onde ela estava em São Paulo e não podia esperar mais. Tinha adiado a chamada o dia inteiro, com medo de constrangê-la, mas o desespero acabou vencendo.
O telefone chama a primeira vez. O tempo é pastoso e escorre lento pelos minúsculos caminhos de um fio interminável. O toque do aparelho não acontece de uma vez, como sempre me pareceu. Ele tem um passo lerdo e se assemelha à travessia de um longo corredor. Não é um relâmpago, é uma seqüência de sons, doloridos e demorados, que me assusta, obrigando o coração a fazer seu trabalho em outro ritmo.
Não temos o direito de molestar quem nos ama, mesmo que seja para provar nosso amor. Devo desligar, digo a mim mesmo. É uma crueldade. Se ela não quis conversar quando estava em melhores condições, com que direito invado agora a sua vida, derrubo sua porta para dizer o que ela sabe, que a amo, que não a esqueço?
O segundo toque é ainda mais angustiante e só a iminência de falar com ela, não, de falar para ela - veja como o destino subitamente mexe até na linguagem: não posso mais falar com ela, tenho que me contentar com um monólogo solitário - só essa iminência me deixa em sobressalto. Pode ser agora.
Mas não é. Débora sempre foi vaidosa, não ia permitir que eu guardasse dela uma imagem decadente. Mas esta solidão é mais fácil para ela do que para mim, porque ela a impõe em nome de meu bem estar. Droga!, não quero ser poupado e não admito que nossa história termine sem um último confronto. Não há como suavizar esse desaparecimento, querida. Tudo dói, dói muito - vou ensaiando o que falar quando ela atender. Não, não ficou bom assim, talvez eu tenha que recordar os tempos lindos. Você se lembra do dia em que nos conhecemos? Você já mulher experiente e eu um menino. Depois de apresentados, ficamos um longo instante olhando um para o outro, não foi uma contemplação premeditada, eu simplesmente senti medo de dizer uma palavra e estragar tudo. Você então segurou minhas mãos, convidando para um passeio, e eu, cada vez mais tímido, saí contente por estar com uma mulher de verdade e não com uma menina. Mudo, fiquei ouvindo nossos passos na calçada.
Mais um toque, é o terceiro. Não sei se você vai atender, você pode ter abaixado o volume do aparelho, deixando o fax programado para recebimento automático. Logo você que sempre odiou escrever, agora está limitada a esse meio de comunicação. Seria menos doloroso se eu mandasse um fax, mas eu jamais pararia de escrever. Engraçado, estou falando com você antes mesmo de você atender.
Não vou me esquecer nunca dos últimos dias que passamos juntos. Eu sentia sua apreensão e você fazendo tudo em sigilo, sozinha, percorrendo clínicas, laboratórios, consultórios. Foram meses podres. Eu acordava com ranger de dentes - você chorava no sonho. Todas as vezes que eu tentava esclarecer as coisas, você fugia, mudando o rumo da conversa. Nunca viveu tão alegre como naquele período - uma alegria que queria dizer: é o fim, meu bem, aproveite os últimos capítulos.
Quando começou a quarta chamada, ela atendeu. Sei que era ela porque não disse nada. Depois de alguns segundos de vacilação, pronunciei seu nome. E ouvi o que sobrou da voz dela, um fraco resmungo. Fiquei apenas ouvindo aquele silêncio que era uma forma desesperada de comunicação. Não era um silêncio com etapas, cheio de ruídos, e sim um silêncio branco. Não disse nada do que planejara.
É preciso aceitar as coisas - me lembro de um comentário dela, que só depois assumiu seu verdadeiro significado. Aceitar a mudez, aceitar a distância, aceitar o desaparecimento. Débora, que já não podia mais falar, escutava meu silêncio, eu escutava o dela. Talvez fosse isso a eternidade.
Não sei quantos minutos ficamos assim, vivendo o vazio à nossa volta. Sabia que iria desligar, devia estar desesperada por não poder falar. Antes que desligasse, repeti seu nome, tudo que eu sentia por ela já havia sido dito. Não precisava acrescentar nada. E tive certeza - como estamos sempre querendo confirmação das coisas, meu Deus! -, ela realmente me amava. Apesar de doloroso, seu silêncio me apaziguou. Aquela era nossa despedida. Depois de desligado, o telefone passou a emitir aquele som repetitivo. Era um grito de socorro. Débora estava precisando de mim e nós dois sabíamos que nada mais poderia ser feito.
Recoloquei o telefone no gancho e fiquei sentado no sofá. A casa quieta. Era mais do que quietude. Era vácuo. Súbito as paredes recuaram e os móveis se encolheram.
Então me levantei. Tenho que lutar, afirmei com toda a convicção. E liguei a tevê.
Miguel Sanches Neto, paranaense, crítico literário e escritor, publicou “Um Amor Anarquista” (romance, Ed. Record, 2006). www.miguelsanches.com.br

Nenhum comentário: