4 contos

GUERRA NA CABINE TELEFÔNICA
Acordei com a platina doendo. Sentia a presença latente dos parafusos, da platina e dos fios na minha clavícula direita. Ao escovar os dentes a bosta da platina dá um estalo enorme. Não agüentei a dor, caí e bati com a cabeça no vaso. Lembram do episódio do Sítio do Pica Pau Amarelo, onde cai uma enciclopédia na cabeça do Visconde de Sabugosa? Fiquei lá, desacordado, com o nariz atolado no ralo do banheiro:
- A Raiva é sobre-humana.
- Quem está com raiva aqui?
- O foco está no outro.
- Que merda é essa? De quem estão falando?
- Deus dá dedada.
- Só se for na bunda da tua mãe!
Acordei na maca de um pronto socorro. Uma enfermeira, morena, olhos verdes, dentes alvos e assimétricos, me pergunta se sou alérgico a tal anestésico. Digo que não sou alérgico a nada e ela enfia a agulha no meu braço:
- Não fuja de Deus.
- Deus está morto!
- Mas o homem não.
- O Povo precisa saber disso.
- Adoro o Povo!
- Eu adoro abraçar uma nêga suada.
Acordei com um curativo na cabeça e com a boca seca. Saio do pronto-socorro, ainda tonto, e emburaco no primeiro boteco. Peço um copo cheio de cachaça e entorno. Repito o pedido. A sede é grande. Sempre tive muita sede. Fico de pileque e adormeço na sarjeta de frente ao boteco:
- Alegria não é felicidade.
- Quem é o palhaço aqui?
- O Outro sou Eu.
- Me aceita que eu me aceito.
Acordei com um cachorro lambendo minha boca. Me lembrei de Jó. O estômago doía, a cabeça doía mais. Levanto e sigo tonto e cambaleante. Algo me atinge em cheio, parece ser uma moto:
- Não há nenhum prazer em não ter nada pra fazer, prazer é ter e não fazer.
- John Raper! É você?
- Fortaleza é uma favela de muro baixo.
- E eu com isso!
Acordei com a mesma enfermeira enfiando outra agulha em meu braço. Tem certeza que não é alérgico a esse anestésico? Já disse que não sou alérgico a nada! Entrei em coma:
- O desejo é antes de tudo auto-erótico e a impotência uma incapacidade de amar a si.
- É você Lacan?
- Não estamos acostumados a sentir fortes afetos, sem que eles tenham algum conteúdo ideativo.
- Tudo bem, querem jogar pesado, então vamos lá.
- A ansiedade gera repressão.
- Segura essa: o corpo não é, como o organismo, um objeto físico-químico que responde instintivamente ao mundo que o cerca, mas sim a apreensão da própria imagem fornecida pelo exterior, que lhe permite sair do caos inicial de fragmentação e passar à unificação, tornando-se lugar das representações psíquicas. Gostou?
- Não há uma maneira única de satisfazer o desejo, o que confere ao humano a sina de estar sempre insatisfeito frente a este.
Acordei um ano mais velho. A platina doía e a enfermeira depilava meu pênis. Sorri com seus olhos verdes. E eu pergunto se bateria uma punhetinha de boas- vindas. Ela falou:
- Para que o sujeito se salve da submissão ao outro é preciso que ele sustente o seu próprio desejo.
- Aqui também!?
- O Real, o Simbólico e o Imaginário são indissociáveis.
- Eu quero a minha mãe!


Cláudio Portella, cearense, contista e poeta, organizou “Melhores poemas de Patativa de Assaré” (Ed. Global, 2006); é autor de “Bingo!” (Poesia, Ed. Palavra em Mutação, 2004).contato: clautella@ig.com.br

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O REPOSITOR
Preta, a água irrompia sob a greta da porta-de-aço, empurrada de dentro da lanchonete por um frenético rodo, escorrendo para a calçada, em princípio volumosa envolta em espuma de detergente, espraiando-se então em fios desenhados pelas pedras-portuguesas, para, num delta, encontrar-se novamente, desaguando na sarjeta, arrastando restos do dia que passou, guimba, pau-de-fósforo, palito-de-dente, papel amassado, tampinha-de-garrafa, canudo, vagando imunda pela Rua Conselheiro Crispiniano rumo à boca-de-lobo quase esquina do Largo do Paissandu.
Na direção contrária, gordos sapatos velhos chapinham ignorando poças, camiseta branca cavada suando touceiras no peito sovaco barriga. O centro da cidade é barras de calças levantadas, claridade de um generoso abril. O homem descerra a porta metálica, o veneno de rato intoxica a manhã. Uma barata espoja-se no chão, esmigalha-a indiferente, bufa.
Camelôs enredam bancas, cedês, fitas-cassete, canetas, roupas, ervas, bugigangas. O homem-sanduíche conversa um café. Um branco-encardido uniforme pincela o monturo que breve tornará churrasco-grego. O de migalhas-à-barba desfia, garras encardidas, sacos de lixo. O do vira-lata enlaça restos de papelão numa carroça. O do celular negocia. O do cobertor espreguiça. A de cabelos alvoroçados impreca. A do carro ignora. Ônibus roncam e resfolegam e guincham e buzinam e enfileiram-se. Pernas entrecruzam-se ensonadas. Perto, vermelha bandeira berra palavras-de-ordem. Jornais se oferecem, lúbricos. A quarta-feira se esgueira rumo aos sonhos.
Comprido, o negro, desengonçado terno chumbo, curta gravata amarela carros-de-corrida estrangulando uma camisa-manga-comprida branca, soa ’Dia, assustando o gordo que, costas à rua, passa o primeiro café. Hum? Aberto, já? Enxuga as adiposas mãos no jeans, olhinhos espremidos catando fichas do videokê no caixa, Quantas? A música irrompe guerreando barulhos, o microfone capricha palavras de um amor que já não é. Finda, resfolegam as dez para as nove.
No balcão, a azáfama de copos americanos, médias, colherzinhas, açucareiros de plástico, pãezinhos franceses com margarina aconchegados em tristes guardanapos sobre pratinhos engordurados, vitaminas, refrescos, coxinhas, quibes, esfirras, pães-de-queijo, hambúrgueres, em silêncio bebe cerveja um velho que limpa a espuma na gola da camisa, a mesma música irrompe guerreando barulhos, o microfone capricha palavras de um amor que já não é, um motoboy, capacete entreabraçado, pára, um ambulante apregoa o disco, ... aqui, patrão!, uma comerciária ri, outra sente uma coooisa!
O terno chumbo acomoda-se elegante. Vizinho, um garoto refestela-se sobre o tampo solto da banqueta, trezentos e sessenta graus, lambuzado de ketchup e mostarda. Do outro lado, solidário, o velho meneia a tulipa.
(Jardim Jaqueline-Terminal Bandeira, 6250, mais de vinte quilômetros empanturrados corredores mãos náufragas cansaço.)
Rasgam os dentes o misto-quente, suspensa a garrafa de coca-cola. À parede, sujam as horas.
O gordo estendeu o troco e outras dez fichas, Hoje é dia!, e a mesma música irrompeu guerreando barulhos, o microfone caprichando palavras de um amor que já não é.
Dois meninos estacam embaciados, saquinho plástico entrededos, alçado às narinas de quando em quando. Começo, bisbilhotam, zombeteiros. Após, a melodia repetitiva atropela-os. Langorosos, perambulam, vontade de nada.
(Há uma casa, pequena, “Minúscula!”, tijolo e massa e cimento fermentados em fins de semana e folgas, num lugar em que a água falta e a bosta e o mijo vertem pelas faldas das ruas à noite banguelas de luzes.)
Música de corno!, enjoou as dobras do pescoço, na terceira vez em que o negro reclamou fichas, Catorze? Mesma música?, paletó impecável. O velho, mastigando nacos de lingüiça, com a cabeça seguia os volteios, contente. Além da porta, impacienta-se o asfalto quente.
(Da laje, o movimento da Rodovia Raposo Tavares, faróis que perseguem sombras, o walkman comprado na Rua Santa Ifigênia, “Repositor do Carrefour Limão”, “Tem futuro, isso?”)
Atiçados pelo gordo, o chapeiro e o atendente interceptam inconveniências do velho, arrastam-no à calçada, sob apupos de contínuos e desempregados. Bêbado, buscou atracar-se ao videokê, onde a música irrompia guerreando barulhos, o microfone caprichando palavras de um amor que já não é, mas, num giro, desabou sobre artesanias, brincos, anéis, cordões, pulseiras, colares, amostradas numa lona no chão estendida. Perseguido, coxeou labirintos da Rua 24 de Maio, bancas de cedês, fitas-cassete, canetas, roupas, ervas, bugigangas, homens-sanduíches, celulares, cobertores adormecidos, cabelos alvoroçados, pernas, murchas notícias de jornais.
Em meio aos ônibus que roncam e resfolegam e guincham e buzinam e enfileiram-se um negro comprido, desengonçado dentro de um terno chumbo, curta gravata amarela carros-de-corrida estrangulando uma camisa-manga-comprida branca, evanesce.

Luiz Ruffato, mineiro, poeta e contista, participou e organizou diversas antologias; publicou “Vista Parcial da Noite” (Ed. Record, 2006), terceiro volume da pentalogia “Inferno Provisório”. Contato: luizruffato@superig.com.br

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SINALEIRA
1.
Vermelho de novo. O homem vira o boné para trás, esfrega a testa com o antebraço, agarra suas laranjas e olha sem esperança para os carros que vão parando. Mercedes, BMW, dois Gols, Vectra, Polo, Clio, Unos. Homens com suas esposas, mulheres com sua beleza, jovens com seus amigos, senhores com sua riqueza. Ele olha para todos sem sua camisa, com suas laranjas, e aposta no do Clio. O condutor é um homem de idade, de certo compreende as mazelas do mundo e quiçá seja um defensor dos marginalizados e excluídos. Aproxima-se com alguma pressa. Bate no vidro. O outro sequer vira o rosto. Bate mais forte. Sinal ainda vermelho. Ia bater mais uma vez, mas o Clio já acelera um pouco, muito pouco, apenas para tirá-lo do lado. E fica ali o sem camisa, boné para trás, laranjas na mão.
2.
Diabo de sinaleira. Criam perimetrais, financiam carros, melhoram o design, o motor e a tração, cobram fortunas de seguro e é isso, gente demais, rua de menos. No meu tempo se conseguia andar pela cidade, hoje é esse caos, uma sinaleira em cada esquina. E ainda tenho que aturar esses vagabundos. Olha lá a cara desse, forte, saudável, bom pra carregar umas pedras. Que faz aqui? Imagina se vou comprar essas laranjas podres. Pior que tá vindo pra cá, o diabo. No meu tempo eu chamava a polícia e botavam esse elemento no xadrez.
3.
Mãe, que homem é esse? O que faz sem camisa, sem tênis, de barba, na rua, sozinho, andando entre os carros com laranjas na mão? Por que ninguém ouve o que ele diz? E se for Jesus Cristo disfarçado, como na Bíblia? E se for doente e não puder trabalhar? E se tiver desempregado como papai? Ei, mãe, tô falando com você!


Marcelo Spalding, gaúcho, participou da antologia “Contos de Bolsa” (contos, Ed. Casa Verde, 2006) e colabora no site Digestivo Cultural. Contato: http://www.marcelospalding.com/

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UMA AVENTURA REVOLUCIONÁRIA
Os dois chegaram a Havana com indômito espírito revolucionário. Brasileiro em Cuba é assim. Em cada esquina uma Sierra Maestra, em cada cidadão um Che. Prometeram, ainda no aeroporto, uma conduta rigorosamente compatível com a Revolução. O mínimo que poderiam fazer era um trabalho voluntário colhendo bananas em Santiago. Sinto dizer que esse vigoroso sentimento de latinidade solidária durou menos de dez minutos.
No que o primeiro rum foi oferecido, ainda no avião, o projeto bananeiro foi para o caralho. Encheram o pote. No primeiro dia na Ilha visitaram a Casa da Música, ficaram alucinados com as garçonetes do El Palenque - suspeitíssimo restaurante de Vedado - e programaram para a manhã seguinte uma viagem a Varadeiro. Contrataram um motorista que prometeu pegá-los na porta do hotel em um possante automóvel.
Sete da manhã aparece o motorista, em um Ford 1953 absolutamente inacreditável. Para agradar os brasileiros, o cubano levou uma fita com músicas do patropi. Aliás, permitam-me a correção. Músicas, não. Música. A tal fita continha uma hora de gravação com a mesma canção, O Caminhoneiro, do Roberto e do Erasmo.
Como ambos nutriam pelo Roberto Carlos uma simpatia semelhante a do Dalai Lama
Pelo Mao Tse Tung, imaginem a merda. Faltava coragem para mandar o cubano desligar o som, diante do entusiasmo vigoroso com que o ilhéu bradava aos mares caribenhos os versos do Rei e dos dois metros de altura do negão.
Mas não há mal que dure tanto. Pararam em um mirante, para tirar fotos e mijar. Foi quando um deles, profundamente mal-humorado, teve a sublime idéia de mandar pra dentro uma garrafa de rum com água de coco. O outro alertou:
- São nove da manhã.
- Foda-se. Eu só tenho condições de ouvir essa merda bêbado. E esse cubano vai tocar essa porra a viagem inteira.
O outro foi obrigado a concordar com a sensatez da proposta. Comprou mais uma garrafa de rum na lojinha para turistas e mandou bala.
Retomada a viagem, O Caminhoneiro continuou sendo a trilha da sonorosa aventura. Chegaram a Varadeiro e, já embalados, prosseguiram nos trabalhos etílicos com edificante fluência. Pintou de tudo - mojitos, daiquiris, añejos, cervejas e o escambau. Se aparecesse alguém servindo querosene, não recusariam a gentileza, que isso não é papel de homem.
Após um dia intenso, em que um deles cogitou montar uma barraca na praia para vender o final de uma cacetada de novelas brasileiras - eram exibidas de seis da matina à meia-noite - chegou a hora da partida. O cubano apareceu para buscá-los brandindo a fita, a mesma fita, como um estandarte. Tinha a empáfia triunfal de um Carlos Alberto Torres levantando a Jules Rimet.
Nem bem entraram no carro e O Caminhoneiro soou pela nonagésima vez no dia. Mas algo havia mudado. Aos ouvidos de ambos, os acordes do Roberto pareciam a introdução do hino nacional em final de Copa do Mundo. Dez minutos depois, feito bezerros desmamados, comovidos com a descoberta de que o patinho feio era ganso - ou cisne, vá lá - cantavam e soluçavam acompanhados pelo cubano, satisfeitíssimo com o sucesso da homenagem aos amigos brasileños:
- Todo dia quando eu pego a estrada, quase sempre é madrugada e meu amor aumenta mais...


Luiz Antonio Simas, carioca, é historiador. Escreve no http://www.hisbrasil.blogspot.com/

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