Tem negro de pele muito branca, quase albino mesmo, trabalhando descalço, capinando diuturnamente sua lavoura de fumo no interior do município de Sobradinho, no Rio Grande do Sul. Neto de imigrante pomerano é semi-analfabeto e não tem a maioria dos trinta e dois dentes da boca. Os que restam estão em caco. Tem negro amarelo de olhinhos puxados cuidando das suas hortaliças e tomateiros e sorrindo para o atravessador que vem explorá-lo na periferia de Cascavel, no Paraná. Bisneto de imigrantes japoneses, vindo, não de Honshu a maior ilha, o Japão aristocrata, mas de Okinawa e Hokaido, um Japão plebeu, sem terra e sem honra perante seus senhores feudais.Tem negro de todo matiz, carregam um sinal comum: a pobreza, a falta de instrução. Porque se fossem azuis e possuíssem dinheiro branqueavam na hora. A sociedade brasileira é oportunista. Mas como disse – e muito bem - meu colega Bira Azevedo na sua canção Trânsito: "Um negreiro vai / um negreiro vem / no bafio da onda / o bafão do trem //".O livro Contos Negreiros de Marcelino Freire, pernambucano, brasileiro, negro assumido na linha de Xangô, trata de todos os matizes possíveis dessa nossa uma pele que se revela multicor, e sob qualquer derme é negra. Marcelino expõe de forma contundente o preconceito. Usando uma linguagem forte, lírica, enxuta, deliciosa. Ele conta como falasse a nossos ouvidos, como se lesse para nós, entoando ao acordo a voz de cada personagem. Na mais pura tradição mourisca do contador de estórias que influenciou o cordel e o repente do seu amado Pernambuco..."Enquanto Zumbi trabalha cortando cana na zona da mata pernambucana Olorô-Quê vende carne de segunda a segunda ninguém vive aqui com a bunda preta pra cima tá me ouvindo bem?".(Trecho do Canto Primeiro – Trabalhadores do Brasil)Não ouvem não, Marcelino! Os negros de pele mais clara deste país não ouvem os de pele mais escura, e os de pele mais escura que têm dinheiro já não ouvem os negros de pele mais clara que não têm, nem os de pele retinta, também pobríssimos. Porque o sonho de todos os negros, que são todas as gentes deste imenso negreiro chamado Brasil, é galgar o estrelato no Big Brother. É virar Xuxa. É dar-se a brejeiradas fiscais e movimentar zilhões para comprar o mundo. Marcelino, ainda que não ouçam nitidamente, continua firme teu canto.
por Alexandre Florez, compositor e escritor
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