Entrevista com o compositor Tom Gil

Qual foi a tua trajetória musical, percorrida do sertão (começo da carreira, primeiros trabalhos) até o porto (momento atual, lançamento do cd "Do Sertão ao Porto")?
Nasci em Várzea Alegre, região do cariri no centro sul do Ceará. Morei em zona rural a 15Km da sede até os 9 anos. Quando eu tinha 12, minha família mudou-se para Fortaleza, em êxodo rural (foi o primeiro porto). Aos 14, comecei a tocar violão de forma autodidata, em um digiorgio adquirido por um dos meus irmãos mais velhos. Aos 16, integrei um grupo de danças folclóricas da Escola Técnica Federal do Ceará onde cursei o segundo grau. Nesse grupo tocava zabumba e violão. Mais tarde integrei o coral da Universidade Federal do Ceará por dois anos. Nessa época, já compunha e participava de algumas apresentações coletivas em "showmícios" de partidos esquerdistas, festivais (na realidade só dois). Resido em Porto Alegre desde 95 (meu segundo porto). Aqui, continuei os estudos de violão que havia iniciado em Fortaleza, no Palestrina com o professor Jorge Noblega e, posteriormente, com James Liberato. Montei a banda "Virgulino Vírgula", juntamente com Mário Marmontel, quando na ocasião nos apresentamos em casas noturnas e em teatros de Poa. Gravamos dois cds demonstrativos da Virgulino. Integrei mais tarde a banda de forró “Cheiro de Fulô”, fazendo vocais de apoio e tocando zabumba, também na noite de Poa. Participei de três festivais da cidade de Porto Alegre e do festival da cidade de Queluz, no interior de São Paulo. Entre 97 e 2000 gravei meu primeiro cd de forma independente, intitulado "Novo Mundo". Em 2006, finalizei o “Do Sertão ao Porto”.



Qual é a proposta estética dessa "viagem" sertão-porto? Que história você conta, já que o cd tem unidade e estrutura definidas e as canções tem letras bastante literárias, alguns poemas musicados viraram canções, além de parcerias com poetas? Outra coisa: essa força literária que as letras possuem mostra uma preocupação bastante crítica com a situação histórica e social do país e da cultura nacional. Comenta uma pouco essa tua visão política, isso que aparece de forma bem incisiva no cd.
Bem, creio que para o artista é mais importante ter atitude estética do que outra atitude qualquer, quer seja política, social, comportamental, posto que o artista é objeto da arte e a obra fala por si ou pelo menos é o que se propõe. O que importa é a forma como a obra vai ser desenvolvida a partir de uma inspiração, um mote, uma motivação, um questionamento filosófico, um flash inicial, que pode ser uma indignação, um medo, um sentimento ameno, uma dúvida, ou qualquer coisa banal, que na verdade está armazenada na nossa memória afetiva ou intelectual e de repente, ou devagarinho mesmo, vem à tona na forma de uma expressão artística. Essa forma de expressão carrega muitas vezes reminiscências de nossa infância ou de um passado-presente não tão remoto, daí acho que, por isso, no meu trabalho existe esse traço mais rural (não ruralista), referências às minhas primeiras vivências musicais e afetivas em um contexto específico, o sertão nordestino. Mas também juntaram-se a essa pegada outros elementos, inevitáveis devido a minha vivência com o urbano, o porto. E é essa a proposta de "Do Sertão ao Porto": tentar expressar de forma musical e textual as minhas vivências, do rural ao urbano, como também o caminho percorrido entre esses dois pontos geográfico-culturais, na busca de uma identidade, já que a gente é o que vive. Exemplificaria com duas canções: De um lado, o coco metido a progressivo "cearacaju", reverencia os valores culturais do nordeste, inclusive sampliei a voz de um cantador de coco lá da cidade onde nasci. Noutra ponta, a balada estradeira, metida a pop, "janela para as estrelas", já tem uma mensagem filosófica, metafísica, fala de nossa eterna busca por um sentido, um equilíbrio, a nossa percepção do universo, não tem nada a ver com regionalismo. Em síntese, a proposta do cd é usar uma linguagem que todos compreendam, tanto quem mora na roça quanto quem mora na cidade, mas nem por isso tenho a pretensão de conquistar a unanimidade. Agora, em verdade, não sou um nacionalista afetado, mas não aceito a dominação mundial de uma "estética do império", e é essa a minha preocupação-indignação quando se fala de cultura nacional. Quanto aos parceiros poetas, graças ao convívio com meu irmão, Cândido Rolim( poeta) de certa forma passei a ter contato com a literatura, especialmente com a poesia. Também, tive o privilégio de por intermédio do Cândido, conhecer Ronald Augusto. E esses dois tornaram-se meus primeiros parceiros em algumas letras. Também o meu irmão me levou a conhecer o poeta perfomático carioca Fábio Dallas, que tem o poema "começo" musicado por mim ( última faixa do cd). Adquiri do meu irmão um livro de poesia de autoria de Ricardo Aleixo, poeta mineiro, e musiquei o seu poema "nanã", que está no cd também. Enfim, parafrasiando os poETs (grupo formado pelos poetas-músicos Ricardo Silvestrin, Alexandre Brito e Ronald Augusto), é saudável ouvir uma "música legal com letra bacana", e existe poesia que pede pra ser musicada e existe letra de música que mesmo quando lida e não cantada, não perde sua força literária, por isso é também poesia.



Gil, o cd traz alguns poemas musicados por ti e parcerias com poetas. Que importância tem a poesia nas tuas canções e na tua vida pessoal?
Tradicionalmente, no Brasil tem muita poesia na música. Apesar de letra de música e poesia não serem a mesma coisa, elas se aproximam muito e se entrecruzam no tocante ao ritmo, à métrica, à melopéia, às imagens e também a brincadeira com a lógica, com a razão. A palavra quando cantada, falada, declamada ou lida carrega diferentes nuances de sedução mas não deve perder a sua eficácia na comunicação estética. Mas sempre lembrando que o mais importante não é do que se fala, mas como se fala do que, ou seja, a forma prescinde do conteúdo, e o convívio com a poesia me ensinou a acreditar nisso.



Que novos ritmos, estilos e linguagens musicais a cultura musical de Porto Alegre e do RS integraram ou influenciaram no teu trabalho de compositor e músico?
O ritmo que mais me contagiou daqui foi o candombe. Mesmo sendo um ritmo oficialmente afro-uruguaio, considero daqui também, já que faz parte da cultura do Cone Sul. E foi aqui onde tive mais contato com esse ritmo forte e visceral, principalmente por intermédio do amigo Mimo Aires( músico percussionista de Porto Alegre), com quem compus Xaxandombe, a partir de uma brincadeira de misturar o xaxado do zabumba com os tambores do candombe. Também aqui em Porto Alegre, a convivência com o profissionalismo e a ótima qualidade dos músicos, me estimula muito a querer me aprimorar como músico e a criar novas parcerias.



Como é trabalhar com música aqui em Porto Alegre?
De uma maneira geral, é dificultoso fazer um trabalho autoral devido a um certo comodismo, saudosismo e desconfiança das pessoas diante de um trabalho não conhecido e/ou reconhecido pela crítica/mídia. Também existem poucos espaços para as várias tendências musicais, ocorre super concentração de investimentos, monopólio de uma minoria estética, enquanto a grande maioria de músicos, compositores de outras “escolas” ficam à margem, na surdina , muitas vezes sendo condenados a caírem na mesmice para poderem aparecer. E isto não é só um problema local, é nacional e acho que mundial. Realmente, “o pop não poupa ninguém”.



E o que fazer para mudar isso?
A forma de tentar mudar isso é por meio da "guerrilha cultural": unir-se a outros guerrilheiros, compositores, agitadores culturais, pessoas que se interessam por mudanças e estão empenhadas em invadir os veículos tanto alternativos, quanto os mais tradicionais. A internet e as rádios comunitárias são instrumentos muito importantes nessa luta. O movimento "música autoral" promovido por vocês do Vaia é louvável, mas precisa
avançar mais, invadir mais, criar focos em outros territórios, buscar novos aliados, assaltar o parlamento e derrubar o poderio dos latifundiários culturais. E também que não seja somente um “movimento de apoio aos músicos autorais de Porto Alegre”, mas que se torne um “movimento de apoio ao músico autoral”, de qualquer lugar do RS e, por que não?, do Brasil . A cultura precisa ser mais democratizada e sem fronteiras. UNI-VOS!!!!

2 comentários:

etocchetto disse...

Gostei da maneira como o Jornal Vaia esplorou as opiniões do Gil, para quem conhece este figuraço sabe que é bem real.
Muito sucesso para este "Cearúcho", pois já são muitos anos no sul.

Fabiano Dian disse...

Bacana rever os antigos amigos. O Gil é uma figuraça. Estudamos juntos no Palestrina.