Somos assim, grudados pela cabeça. Três irmãos. Três vergonhas do nosso estado físico-estético-decadente. Mas nada podemos fazer. Deus quis assim. Somos Jorge, Adão e Cláudio. Não sabemos o porquê de um nome para cada. Bastava um só título. Não faz diferença chamar um ou outro. Vamos juntos.
Eu, Jorge, amo Fátima, que mora do outro lado da rua. Eu, Adão, amo Ana, prima, que tem medo de nós. Eu, Cláudio, amo Roberto, lá do 506, mas ele nem me olha, e tenho o coração fraco. Os médicos nos deram, no máximo, doze anos de vida. Hoje, temos vinte e seis.
São três corpos independentes, ligados por três cérebros intercalados. Cada um com suas idéias e ideais, mas sentimos todos a mesma dor, não importando o local da batida ou do corte. De alguma forma somos interligados e inseparáveis, segundo os médicos. É arriscada uma desunião.
Moramos com nossa mãe. O pai foi embora quando nos viu. Nossa mãe é a única pessoa que realmente nos ama. Para ajudar com as despesas, fazemos doces e ela vende no prédio e na escola do final da rua. Não temos problemas com as horas mais íntimas, como as idas ao banheiro, por exemplo. Parece estranho, mas nascemos assim, e isso se tornou comum. Há dois banquinhos em torno do vaso sanitário, para sentarmos enquanto um está necessitado.
Para avistar nossos amores, combinamos o seguinte: nos dias pares da semana, passamos a tarde no pátio, para Jorge dar atenção à Fátima. Nos ímpares, passamos o dia no terraço, para Cláudio visualizar Roberto. Como não vemos nossa prima Ana com freqüência, não importa o dia, se ela aparece, ficamos dentro de casa, depois as coisas tomam seu curso normal.
Semana passada aconteceu algo que nos deixou muito triste. Enquanto saíamos ao pátio, cruzamos com Roberto. Cláudio não falou nada, não fez brincadeira, não fez nada. Apenas olhou o sujeito. Ele voltou-se. Andou até nós e, sem percebermos sua intenção, não tivemos tempo de desviar do soco que acertou o estômago de nosso irmão. Não era mais para ficar mexendo com ele. Mas Cláudio não disse nada, não falou nada e nem fez brincadeira.
Somos assim, grudados pela cabeça. Três irmãos. Três vergonhas do nosso estado físico-estético-decadente. Mas nada podemos fazer. Deus quis assim. Somos Jorge, Adão e Cláudio.
Somos assim, grudados pela cabeça, mas nos amamos.
Ontem, Fátima ligou aqui para nossa casa. Falou com nossa mãe e disse se não pararmos de incomodá-la, chamará a polícia. Ana não aparece mais.
Choramos e choramos.
Elaboramos um plano.
Jorge e Adão vão matar quem nos odeia. O único que nada fará, será o Cláudio. Não podem prender um inocente. Ele nem tocará nas armas. Faremos as coisas na presença de muita gente. Cláudio aparecerá impedindo os assassinatos, mas como somos dois contra um, ele não terá forças.
Saímos escada abaixo. Nem trancamos a porta do apartamento. É meio-dia. Somos dois com porretes e um fingindo-se inconformado com a situação. Paramos na porta do prédio. Crianças chegam da escola. Mães esperam essas crianças. Roberto estaciona o carro. Partimos para cima dele. Pauladas na cabeça. Só na cabeça. Muitas pauladas. Pauladas na cabeça. Muitas pauladas na cabeça.
Roberto não se mexe mais. Há muito sangue no chão. Cláudio grita muito. Todos gritam. Muita gente se aglomera em frente ao prédio. Abrimos o portão e corremos desengonçados para o outro lado da rua. Ninguém toca em nós. Todos fogem. A porta da casa do outro lado da rua é fraca. É fácil entrar. Quatro braços arrastam a mulher para fora. Deitamos-na ali mesmo, na calçada. Partimos para cima dela. Pauladas na cabeça. Só na cabeça. Muitas pauladas. Pauladas na cabeça. Muitas pauladas na cabeça.
Final 1
A mulher não se mexe mais. Sirenes nos cercam. Muitas armas em nossa direção. Gritamos que Cláudio nada fez. Até tentou impedir. Ele é inocente! Ele é inocente!
Eles não sabem quem é Cláudio.
Ninguém quer saber quem é Cláudio.
Armas não têm ouvidos.
Somos assim, grudados pela cabeça. Três irmãos. Três vergonhas do nosso estado físico-estético-decadente. Mas nada podemos fazer. Deus quis assim. Somos Jorge, Adão e Cláudio.
Somos assim, grudados pela cabeça, mas nos amamos.
Final 2
A mulher não se mexe mais.
O plano funciona.
Não somos presos. Não se pode prender um inocente. Deitamos na mesma cama de todos os dias. Há dois homens armados do lado de fora do quarto. Vão ficar assim por não sei quanto tempo.
Eu, Jorge, amava Fátima, que morava do outro lado da rua. Eu, Adão, amo Ana, prima, que tem medo de nós. Eu, Cláudio, amava Roberto, lá do 506, mas ele nem me olhava, e tenho o coração fraco.
Vigilantes não podem dormir. Nós sim. Dormimos e acordamos. Menos Cláudio. Ele tem o coração fraco.
Ele não se mexe mais.
“Três cabeças, um plano três vidas” faz parte do livro Ana Maria não tinha um braço, Porto Alegre: IEL, 2006. Mais Italo em www.italoogliari.blogspot.com
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